Competência crítica ou competência sem crítica?
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Competência crítica ou competência sem crítica?


Você já conseguiu memorizar a diferença entre competências e habilidades, as palavras da moda na educação atual?


Essa parte é fácil. Veja o seguinte trecho da Base Nacional Comum Curricular:



Na BNCC, competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.

Portanto, temos conhecimentos, habilidades, atitudes e valores. Competência é saber usar tudo isso para resolver os desafios da vida e do trabalho.


Eu não consigo deixar de pensar no quanto é estranha essa separação entre vida/cidadania e trabalho, como se o trabalho não fosse parte da cidadania e da vida. Mas, justiça seja feita: ela não é invenção da BNCC. A Constituição Federal de 1988 já definia três finalidades para a educação: o desenvolvimento pleno do sujeito, a formação para a cidadania e para o mundo do trabalho.


O trabalho, portanto, não faz parte dos objetivos de desenvolvimento pleno de um sujeito para a cidadania, e sim, aparece em complemento a ele. Isso, por si, já diz muito sobre a forma como uma sociedade capitalista confere valores diferentes ao conjunto de atividades denominadas "vida" e ao conjunto de atividades denominadas "trabalho". Spoiler: o segundo está sempre em vantagem sobre o primeiro.


A próxima questão é a seguinte: você já parou pra refletir sobre os significados por trás da palavra "competências"? Para quê e a quem elas servem?


Não é segredo que a educação tem se limitado a preparar para o tal mercado de trabalho, mesmo diante da realidade gritante de que esse mercado está ruindo no Brasil. Também não é novidade que essa preparação tem ocorrido, ainda hoje, por meio do que o nosso grande Paulo Freire chamou de educação bancária: um modelo de ensino em que docentes depositam verticalmente o conhecimento em aprendizes.


Inclusive, é curioso notar que os grandes empresários da educação privada que tanto falam em inovação são os primeiros a defender as reformas do sistema de ensino que, cada vez mais, priorizam as tais competências – aquelas que, em última instância, vão servir ao "mercado de trabalho" – em detrimento do desenvolvimento humano.


Sem desconsiderar os pontos positivos da BNCC, muito alardeados por diversos profissionais do setor educacional (embora nem sempre profissionais da educação), não podemos negar que ela muito contribui para esse viés que transforma seres humanos em números.


No terceiro capítulo do livro Educação contra a barbárie, Silvio Carneiro observa que as políticas educacionais têm focado cada vez mais na aprendizagem enquanto absorção de informações em quantidade, relegando a segundo plano as particularidades da tarefa docente.


Para o autor, a BNCC faz parte dessa cultura, pois foi elaborada com base no PISA, que, por sua vez, é uma iniciativa da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Assim, "a economia abraça a aprendizagem e, com isso, faz de seus rankings um verdadeiro sismógrafo das crises da educação”.


Como resgatar a dimensão crítica das competências a serem desenvolvidas por meio da educação, então?


Naturalmente, esse resgate passa pelo radical questionamento das avaliação de desempenho enquanto oráculos absolutos do sucesso e do fracasso. Carneiro afirma categoricamente que "as avaliações de desempenho são a única maneira de manter vivo aquilo que já é processo morto”!


Não, isso não significa disparar na direção oposta e abandonar qualquer medida avaliativa, conforme acreditam os incautos e os de má-fé. Também Carneiro explica que "a alteridade radical da educação não é, pois, a relação de opostos diretos (o proprietário e o não- proprietário), mas é atravessada pelo que é estranho, e todo o desafio é incorporar esse ‘estranho’ às relações educacionais”.


Educar de verdade, portanto, é abrir espaço para o desconhecido, para o surpreendente. A educação bancária, que na verdade nada tem de educação, mas não passa de ensino mecanizado, acaba sufocando, com seus quantificadores voltados para o trabalho, a vida, aquela que parece existir em oposição ao trabalho.


Nas palavras de Silvio Carneiro,

Quando a educação se efetiva realmente, sempre se encontra algo mais do que se procura. É aí que as competências e habilidades se apequenam, pois o que está em jogo aqui são os desejos: aquele brilho nos olhos de alguém que acabou de significar a experiência que viveu.


 

Baseado em:


BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). MEC, 2017. Disponível em:


BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao34.htm>. Acesso em: 5/4/2021.


CARNEIRO, Silvio. Vivendo e aprendendo... A “ideologia da aprendizagem” contra a vida escolar. In: CÁSSIO, Fernando. (Org.). Educação contra a barbárie. Por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar. São Paulo: Boitempo, 2019, pp. 41-46.


Este texto foi escrito em linguagem neutra de gênero. Doeu? ;)


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