Colonialidade e currículo
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Colonialidade e currículo

Quando começamos a entender o que é o pensamento decolonial, não dá mais para pensar de outro jeito! Principalmente se o nosso objetivo é trabalhar com a Educação Linguística crítica, ao invés de reproduzir mecanicamente aquelas aulas de língua descontextualizadas, com base em métodos engessados.


Uma das áreas em que há espaço para o questionamento das estruturas coloniais são os Estudos Críticos do Currículo [Critical Curriculum Studies]. E algumas das perguntas pertinentes a esse questionamento são as seguintes: quem cria o currículo? Quem define o que é importante saber, e o que fica de fora?


Quais são os interesses que embasam essas decisões?


Bem, o sistema capitalista, instituído a partir da noção europeia de modernidade que foi exportada para as colônias, se desenvolveu até chegar ao que hoje chamamos de neoliberalismo. Em resumo, o neoliberalismo justifica todas as suas preocupações e atitudes a partir do mercado.


Assim, a educação tem se limitado, cada vez mais, a preparar para um suposto mercado de trabalho. É essa preocupação que justifica a corrida cada vez mais frenética por um ensino conteudista.


Nos últimos tempos, o conteudismo tem adquirido ares de inovação devido à inserção cada vez maior da tecnologia, como se a mera transposição da aula presencial para as telas fosse uma verdadeira revolução no sistema de ensino...


A verdade é que transmitir e cobrar conteúdo ficou mais fácil, pois a internet é um repositório infinito de informações. Ou seja: em vez de nos aproximarmos de uma educação crítica e libertadora, estamos nos afastando cada vez mais!


O responsável pela prova internacional PISA, Andreas Schleicher, comenta em uma palestra o quanto essa priorização do conteúdo é contraditória: se é possível acessar a qualquer momento informações sobre fórmulas matemáticas, elementos químicos ou fatos históricos, qual o sentido de exigir que estudantes os memorizem?


O objeto do ensino deve ser o que fazer com tanta informação, desde a resolução de problemas triviais do cotidiano até a elaboração de projetos de sociedade que incluam a redução de danos ao meio ambiente, o combate à desigualdade socioeconômica e a abolição de todos os preconceitos, de forma interdisciplinar.


Novamente, caímos na pergunta: o que é educação? Andreotti e Menezes de Souza reúnem e discutem uma série de definições, que incluem desde o preparo para a produção de riqueza econômica, passam pela manipulação social e pela repressão cultural, e chegam até a formação para libertar a si e a demais pessoas da opressão.


Se as definições de educação são tão divergentes entre si, qualquer discussão e processo de tomada de decisão sobre aquilo que se ensina e aprende na escola envolve relações de poder e de controle sobre populações. E é por isso que a educação é indissociavelmente política.


Assim, ao lado de reflexões sobre boas práticas de ensino, de aprendizagem e de avaliação, devemos refletir também sobre o papel de cada agente que tem voz ativa nessas decisões.


Andreotti e Menezes de Souza comparam as diferentes lógicas na educação com a diferença entre ensinar pessoas a cuidar das diversas espécies vegetais em uma floresta e ensiná-las a cultivar bonsai para vender.


Na primeira proposta, cada planta é considerada em suas características únicas, a serem observadas por quem cuida dela; o cuidado, portanto, não é sinônimo de controle, mas de oferecimento de suporte em caso de necessidade. Tanto a planta como quem cuida são sujeitos do processo. Como não há padrões a serem seguidos, não existe a ideia de fracasso.


Na segunda proposta, o papel de quem cuida do vegetal é aplicar técnicas de cultivo com vistas a um objetivo predeterminado. Essa padronização transforma a planta em um objeto, situado dentro de uma hierarquia de valores, e apenas quem cuida dela é sujeito do processo. As plantas que não se adaptam aos padrões impostos são descartadas.


Trazendo essa reflexão para o campo das línguas, vale nos questionarmos: qual das duas propostas temos seguido? Existe espaço, nas nossas práticas docentes, para que cada aprendiz trace o próprio percurso?



Ou estamos descartando quem não se conforma aos falidos padrões de pronúncia "nativa", quem aprende melhor de formas alternativas ou precisa de outros recursos que não os mais tradicionais, quem consegue se expressar de uma maneira que ainda pode melhorar - mas já é um avanço?


Mas, conforme afirmava Karl Marx, não basta compreender a realidade; é preciso transformá-la. Fica a questão: o que nós, que exercemos o ofício docente, podemos fazer para combater as imposições autoritárias no currículo?

 

Inspirado em:


ANDREOTTI, Vanessa; MENEZES DE SOUZA, Lynn Mario Trindade. Through Other Eyes. Learning to read the world. Global Education, 2008.


GRILLI, Marina. Passado, presente e futuro do ensino de línguas no Brasil: métodos e políticas. Linguagens – Revista de Letras, Artes e Comunicação, v. 12, n. 3, 2018, pp. 415-435.


Este texto foi escrito em linguagem neutra de gênero. Doeu? ;)

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