A reflexão de hoje aborda mais um tema fundamental para quem quer abandonar o ensino de línguas tradicional e ultrapassado, e trabalhar com a verdadeira Educação Linguística para o século XXI: o pensamento decolonial.
Como o próprio nome já demonstra, o pensamento decolonial é um processo de desconstrução da colonialidade. Não se trata de negar a colonialidade, de decidir ignorar os efeitos da colonialidade na sociedade brasileira – pelo contrário! Trata-se de reconhecer esses efeitos e trabalhar ativamente para demoli-los.
Porém, antes de pensar em decolonialidade, precisamos entender o que é colonialidade. E para entender colonialidade, é necessário entender o que é globalização.
Ao ler a palavra globalização, você pensou automaticamente na globalização digital? Globalização, para você, é sinônimo de internet? Bem... nem sempre foi assim.
Podemos distinguir quatro grandes ciclos de globalização. O primeiro deles, entre 1492 e 1600, foi marcado pela conquista das sociedades americanas por Espanha e Portugal e pela criação de um sistema de comércio transatlântico.
O segundo ciclo, iniciado no século XVII com uma segunda onda de colonização europeia, foi marcado pelas colônias de escravos no Novo Mundo, e teve seu fim marcado por conflitos como a Revolução Francesa nos primeiros anos do século XIX.
O terceiro ciclo de globalização compreende o aumento nos fluxos internacionais de comércio e tecnologia do século XIX e as migrações em massa para as Américas, estendendo-se até a Grande Depressão dos anos 1930.
Por sua vez, o quarto ciclo teve início com a liberalização do comércio após a II Guerra Mundial, processo que só chegou, efetivamente, a muitos países da América Latina já na década de 1980.
Walter Mignolo observa que, de modo geral, a colonização europeia acabou, mas a colonialidade é um efeito da colonização que perdura até os dias de hoje.
Aníbal Quijano resume a história da seguinte forma: a globalização começou com a constituição da América e, a partir daí, com a constituição do capitalismo colonial, moderno e eurocentrado como novo padrão de poder mundial.
Esse eurocentrismo também teve efeitos sobre o conhecimento acumulado pela espécie humana: civilizações extremamente avançadas, como a maias, a astecas e a egípcia, foram todas consideradas menos civilizadas, e, portanto, inferiores à europeia.
Assim, criou-se uma falsa linearidade do tempo, em que a modernidade europeia representa o avanço, e os conquistadores europeus, missionários da propagação desse avanço aos povos "primitivos".
Você já havia parado para pensar nisso antes, ou é muita informação de uma vez?
Diante de todos esses fatos, o pensamento decolonial representa um passo no sentido de abolir a suposta superioridade europeia, imposta como norma. Afinal, segundo Quijano, a reivindicação da civilização e da razão pela Europa produziu paradigmas distorcidos de conhecimento.
Mignolo defende a opção decolonial enquanto oposição aos propósitos homogeneizantes da globalização. Segundo esse autor, pensar de forma decolonial é desvendar como opera o padrão de poder e buscar uma saída dessa armadilha da colonialidade e da miragem da modernidade.
Bem, e o que tudo isso tem a ver com o ensino de línguas?
Muito simples: é a lógica colonial que define, por exemplo, o que é língua e o que é dialeto. Por que o português e o espanhol, ou o norueguês e o sueco, são considerados línguas diferentes, mesmo tendo tantas semelhanças que um falante de uma dessas línguas compreende um falante de outra?
Enquanto isso, as línguas de imigração alemã ou italiana que se desenvolveram no Brasil, como o pomerano e o talian, já são muito diferentes das línguas que lhes deram origem há mais de cem anos, mas continuam sendo consideradas meros dialetos...
Entendeu? Essa é a lógica da colonialidade.
Também é a lógica colonial que determina os padrões a serem alcançados em determinada língua: gramática impecável e pronúncia "sem sotaque" costumam ser os maiores objetivos de quem ensina e quem aprende, e o desenvolvimento de competências plurilíngues e interculturais fica em segundo plano... por quê?
Qual o objetivo de aprender uma língua, afinal?
É ser capaz de expressar-se enquanto ser humano, seja na escola, na turma de amizades, no ambiente profissional? Ou impressionar pessoas de fora, que pouco ou nada sabem da história, da cultura, da individualidade de quem fala?
É acrescentar algo a si, ou alcançar um status perante indivíduos de fora?
Esse status não existe! Aprendiz de inglês que nasceu no Brasil jamais será estadunidense; aprendiz de francês ou alemão que nasceu no Brasil jamais terá o status global de quem nasce na Europa. E qualquer pessoa brasileira que esteve em algum dos países hegemônicos já sentiu isso na própria pele.
Precisamos decolonizar o objetivo de aprender outras línguas!
A respeito, Quijano reflete:
daí que, quando olhamos nosso espelho eurocêntrico, a imagem que vemos seja necessariamente parcial e distorcida. Aqui, a tragédia é que todos fomos conduzidos, sabendo ou não, querendo ou não, a ver e aceitar aquela imagem como nossa e como pertencente unicamente a nós. Dessa maneira seguimos sendo o que não somos. E, como resultado, não podemos nunca identificar nossos verdadeiros problemas, muito menos resolvê-los, a não ser de uma maneira parcial e distorcida.
Assumir o pensamento decolonial é transcender os padrões eurocêntricos. Somente assim poderemos focar no que importa: no desenvolvimento linguístico do povo brasileiro.
Inspirado em:
COATSWORTH, John H. Globalization, Growth, and Welfare in History. In: Suárez-Orozco,
M. M., & Qin-Hilliard, D. B. (Orgs.). Globalization: Culture and Education in the New
Millenium. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 2004, p. 38-55.
MIGNOLO, Walter. The Darker Side of Western Modernity. Durham/Londres: Duke
University Press, 2011.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: Lander, E. (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e Ciências Sociais. Perspectivas
latinoamericanas. Colección Sur-Sur. Buenos Aires, Argentina: CLACSO
(Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales), 2005, p.p 107-130.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad/racionalidad. In: Bonilla, H. (Org.). Los
conquistados: 1492 y la población indígena de las Américas. Quito: Tercer Mundo-
Libri Mundi Editors, 1992, p. 447.
Este texto foi escrito em linguagem neutra de gênero. Doeu? ;)