Você já ouviu falar em Educação Linguística? O que é isso? Será um novo termo para o ensino de língua estrangeira? Ou não passa de mais uma invenção da pós-modernidade? Esse post traz algumas ideias dos principais nomes da Educação Linguística no Brasil.
O primeiro passo para entender a importância da Educação Linguística e de tudo que ela representa é pensar sobre a diferença entre educação e ensino.
Para o filósofo francês Edgar Morin, o termo educação denota “utilização de meios que permitem assegurar a formação e o desenvolvimento de um ser humano”. O ensino, por sua vez, seria a “arte ou ação de transmitir os conhecimentos a quem aprende, de modo que ele os compreenda e assimile”, tendo assim uma conotação restrita ao âmbito cognitivo.
Da mesma forma, Ferraz afirma que ensino remete à transmissão vertical de conhecimentos de docente a aprendiz, e educação, a um campo amplo que engloba também a atividade de ensino, mas que “pode abarcar relações mais horizontalizadas e menos hierarquizantes”.
Em complemento a essas definições, Takaki, Ferraz e Mizan defendem que educar não é somente desenvolver habilidades e competências: é um processo contínuo de tornar-se capaz de construir significados ativamente.
Em suma, ensinar uma língua seria o mesmo que transmitir conhecimento sobre as propriedades da língua a partir de métodos.
Por sua vez, educar em uma língua seria o mesmo que repensar os conceitos que permeiam a aprendizagem e o uso de línguas nos mais diferentes contextos, considerando os diversos objetivos de cada aprendiz e seu repertório único de conhecimentos e vivências.
Talvez esse artigo pudesse terminar por aqui mesmo, pois a diferença entre educação e ensino pode ser facilmente transposta para o âmbito das línguas. Mas a questão é: será que todas as questões pertinentes ao ramo da educação são familiares a profissionais de ensino de línguas?
Outra questão pertinente para essa discussão é a seguinte: o que é língua? Para Menezes de Souza, a língua hoje não é mais uma coisa, e sim, um processo: o processo de construção de significados em uma sociedade interconectada. Por isso, o conceito de língua como um sistema abstrato já não faz mais sentido.
Naturalmente, o conceito de ensino de língua como ensino de um sistema fechado, de um pacote de regras, também não faz sentido na sociedade de hoje. Os recursos provenientes de uma ou de outra língua estão em constante diálogo: tanto nos meios digitais, quanto na realidade física dos novos fluxos migratórios e do nomadismo digital.
Desse modo, a educação linguística busca ir além do ensino tradicional de língua e cultura, reproduzindo padrões de identidade – e isso vale para o trabalho com a língua materna e com outras línguas.
Afinal, conforme afirma Monte Mór (2018), o ensino tradicional reflete uma visão de linguagem, cultura e identidade preservada e controlada por um projeto iluminista-modernista de sociedade, uma sociedade da escrita.
Essa tal sociedade da escrita já ficou para trás! Os meios de comunicação hoje são multimodais, pois a escrita do lápis no papel pouco tem a ver com as habilidades requeridas para comunicar-se nas redes sociais online. A fusão entre imagem e texto, como nos já consagrados memes, é o exemplo mais claro de que a língua é um processo de construção de significados, um processo que nunca tem fim.
Por isso, Jordão afirma que educar linguisticamente é olhar para o ensino-aprendizagem de línguas como um processo de ensino-aprendizagem de procedimentos interpretativos, isto é, de formas de interpretar, de formas de ser e estar.
Até aqui, está claro que a educação linguística responde a demandas contemporâneas a que o ensino de línguas dito tradicional não é capaz de atender. Nesse viés, educação linguística tem tudo a ver com multiletramentos.
Considerando essas premissas, a educação linguística – como qualquer vertente da educação – é um ato político. Sim, é cada vez mais polêmico falar em política... mas essa polêmica se deve muito à falta de consciência de que a política está em tudo.
Política não se refere somente à eleição de representantes e a uma espécie de torcida para que a escolha tenha sido acertada! Pelo contrário: política é tudo que permeia a vida em sociedade.
A falta de consciência política, ou despolitização, serve justamente para manter o controle da sociedade nas mãos dos grupos hegemônicos – aqueles mesmos grupos que procuram garantir um ensino atrelado às demandas do mercado, pois não gostam de educação crítica para as massas.
Ufa! Fecha parênteses. Vamos voltar ao nosso tema, que é educação e ensino de línguas... nada de política (contém ironia).
Ferraz observa que o termo "educação" representa uma provocação política em relação à indústria de ensino de línguas voltada exclusivamente para o mercado. Ele também reforça que a opção pelo termo "educação linguística" é um posicionamento político que se opõe àquele conceito de ensino que distancia quem ensina línguas de seu papel educacional.
Exemplos desse distanciamento são encontrados no fato de o ensino de línguas no Brasil, como em tantos outros países, ser monitorado por instituições "internacionais", isto é, do norte global imperialista (olha a política aí de novo...).
Desde os métodos e materiais didáticos, passando pelos descritores de competências desejáveis, até as provas de certificação em proficiência: tudo vem de especialistas lá fora. A profissionais do ensino, resta consumir acriticamente esse conhecimento importado.
É nesse sentido que devemos nos posicionar enquanto profissionais da educação. Sem esquecer da importância do conhecimento de línguas para o crescimento profissional, e sem abandonar a missão de auxiliar quem quer aprender a chegar onde deseja, é importante lembrar: educação linguística é ir além da concepção de língua como sistema e como discurso, considerando a dimensão da língua como ideologia.
Será que nós, enquanto especialistas em ensinar línguas, somos capazes de educar?
Baseado em:
FERRAZ, Daniel. Educação Linguística e Transdisciplinaridade. In: PESSOA, Rosane Rocha; SILVESTRE, Viviane Pires VIana; MONTE MÓR, Walkyria (Orgs.). Perspectivas críticas de Educação Linguística no Brasil – trajetórias e práticas de professoras/es universitárias/os de inglês. São Paulo: Pá de Palavra, 2018, pp. 103-117.
JORDÃO, Clarissa M. Uma jornada crítica em retrospecto, ou De como se respira no mar. In: PESSOA, Rosane Rocha; SILVESTRE, Viviane Pires VIana; MONTE MÓR, Walkyria (Orgs.). Perspectivas críticas de educação linguística no Brasil – trajetórias e práticas de professoras/es universitárias/os de inglês. São Paulo: Pá de palavra, 2018, pp. 69-80.
MENEZES DE SOUZA, Lynn Mario T. Educação linguística: repensando os conceitos de língua e linguagem. In: FERRAZ, Daniel M.; KAWACHI-FURLAN, Claudia J. (Orgs.). Bate-papo com educadores linguísticos: letramentos, formação docente e criticidade. São Paulo: Pimenta Cultural, 2019, pp. 244-257.
MONTE MÓR, Walkyria. Sociedade da escrita e sociedade digital: línguas e linguagens em revisão. In: TAKAKI, Nara H.; MONTE MÓR, Walkyria (Orgs.). Construções de sentido e letramento digital crítico na área de línguas/linguagens. Campinas: Pontes Editores, 2018. p. 267-286.
MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. 17. Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.
TAKAKI, Nara H.; FERRAZ, Daniel M.; MIZAN, Souzana. Repensando a Educação Linguística com contribuições de Ricoeur E Monte Mór. Pensares em Revista, n. 15, 2019, pp. 22-46.
Este texto foi escrito em linguagem neutra de gênero. Doeu? ;)
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