Feminismo, negritude, igreja e língua: um papo de esquerda
- marina.grilli.s
- 18 de mai.
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Atualizado: 19 de mai.

O dia 17 de maio marca o aniversário de Karl Marx, um dos maiores sociólogos de todos os tempos e eterna inspiração para a classe trabalhadora minimamente consciente de seu papel no sistema capitalista - e do papel que deve assumir para a superação desse sistema.
Neste 17 de maio de 2025, a editora Boitempo promoveu uma série de debates entre conhecidas personalidades brasileiras do campo das Ciências Sociais e da Educação popular.
Decidi escrever este texto para relacionar o que pude absorver das ricas falas que ouvi nos debates a outras referências, no sentido de articular uma defesa de que o ensino de língua, e o acesso a outras línguas, também são papo de esquerda.
Começo trazendo o pensamento da finada filósofa afro-brasileira Lélia González, que em seu Discurso na Constituinte [de 1988], observou: "a escolha de um sistema de representação, de classificação, valoração e de significação nos remete sempre a uma cultura dominante" (p. 245). Sendo o branco o representante legítimo do Brasil, legitimado pelas classes dominantes desde a época da colonização, fica explícito que o apagamento das identidades negras e indígenas é um projeto de poder.
Para situar melhor essa crítica, fiquemos com a seguinte citação de González (pp. 246-247):
Desconhecemos totalmente a história das culturas e das civilizações africanas, e nos afirmamos num país europeu. O nosso conhecimeno do passado europeu é extraordinário, mas o nosso desconhecimento em ideologia é isto, é um reconhecimento-desconhecimento. O nosso desconhecimento com relação à história da América pré-colombiana, com relação à história africana, é extraordinário. E aponta tranquilamente para um tipo de escolha, uma escolha que se dá justamente para afirmar uma suposta superioridade do homem branco ocidental.
Esta é a verdadeira razão pela qual a língua que falamos é denominada portuguesa, e não brasileira. Apagam-se as marcas de africanização que distinguem a nossa fala daquela dos europeus; apagam-se os séculos de trabalho de cuidado e, portanto, educação de crianças brancas pela figura da mãe-preta; apagam-se os vocábulos de origem indígena que ainda resistem de Norte a Sul do Brasil. E ficamos sendo um apêndice do colonizador, uma extensão da voz europeia.
González (p. 245) conta como era grande o espanto de alunos estrangeiros que vinham estudar na PUC-Rio, onde foi professora, ao contrastar aquilo que se vê nas ruas - a miscigenação racial - com as imagens do nosso país publicizadas na grande mídia - a branquitude, pura e simplesmente. Ora, esse é o exato processo pelo qual passa nossa língua, ao ser denominada português.
E a língua não é apenas moldada pelo pensamento, mas também molda o pensamento. Portanto, a reafirmação de que falamos a língua do colonizador, tanto quanto a reafirmação da suposta democracia racial brasileira na qual não existe qualquer discriminação contra não-brancos, são movimentos específicos da colonialidade para manter calados os subalternos.

Um procedimento típico dessa estrutura que nos cala, nas palavras de Douglas Barros, é a "camisa de força da identidade, imposta pelo colonialismo" (p. 25).
Para esse autor, presente no debate da Boitempo, a identidade é uma ilusão, no sentido freudiano, na medida em que permite recuperar o eu na relação com o outro, "dar sentido à sua própria ação ao se dar conta da sua relação de diferença e negatividade".
Isso significa que a identidade é fluida, marcada pela historicidade - é o que defende Judith Butler quando fala sobre a identidade de quem se afirma como mulher, por exemplo, em constante mutação ao longo do tempo e do espaço, muito ao contrário do que propõem as cis-ativistas transfóbicas aliadas ao conservadorismo.
O problema, segundo Douglas Barros, surge quando a identidade "é instrumentalizada pela gestão social": a mulher passa a ser apenas mulher, o negro passa a ser apenas negro. É aí que está o tal identitarismo, o procedimento de essencializar pessoas que reivindicam determinadas identidades como se não pudessem ser mais do que aquela identidade.
É nesse sentido que Manuela D'Ávila e Guilherme Terreri [Rita von Hunty] reforçam a importância de não cairmos na armadilha de separar a luta de classes, bem delimitada no pensamento de Marx, e as lutas de mulheres, pessoas pretas e LGBT+. Afinal, essas pessoas são mantidas na base da pirâmide das classes justamente por quem as essencializou nesses papéis subalternizados. Não é escolha da mulher preta ser faxineira, não é escolha da travesti ser prostituta (salvo raros casos): é a lógica do identitarismo neoliberal que as empurra para esses pepéis de classe.

Ainda em crítica a um suposto feminismo, que se alia ao conservadorismo transfóbico e que reivindica a essência feminina como inerente às mulheres cis, Butler denuncia:
"a definição dessas pessoas é uma forma de apagamento, e o direito delas de definir você é aparentemente mais importante que qualquer direito que você tenha de determinar quem é, como vive e que linguagem mais se aproxima de representar quem você é" (p. 159).
E não é isso que acontece nas lutas de classes? Quem espera que a mulher ou o negro "se coloque em seu lugar" é a classe dominante.
Na base da pirâmide socioeconômica se encontra a mulher - sobretudo a mulher negra. Porque o Estado não propicia condições para que ela tenha autonomia para participar e ascender nessa sociedade: a ela é relegado o papel de cuidado, de reprodução social, sem o apoio desse Estado. Ela perde oportunidades porque cuida sozinha dos filhos, a creche não tem vaga ou fica muito longe de casa, os horários não lhe atendem. E, assim, essa mulher é mantida na pobreza.
E vale reforçar: sobretudo a mulher negra. Porque o movimento de mulheres negras teve início dentro do movimento negro, como bem coloca Lélia González, enquanto o feminismo surgiu das mulheres brancas de classe média, reivindicando questões que não condiziam com a realidade da mulher negra.
É aí que a esquerda precisa estar, segundo Douglas Barros e Guilherme Terreri [Rita von Hunty]: na construção de espaços de acolhimento e conscientização da mulher negra, porque, como sabemos, ela é a base da sociedade brasileira e de todas as sociedades galgadas na colonização e na exploração das pessoas não-brancas.
É da filósofa negra estadunidense Angela Davis a frase “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela” - mas nossa Lélia González já chamava atenção para a estruturação hierárquica da sociedade brasileira.
Diferentemente daquela encontrada nos Estados Unidos, por exemplo, onde o discurso é de liberdade individual e a segregação entre brancos e pretos é estratégia abraçada pelos pretos, aqui é o branco quem controla as decisões sobre todos.
Assim, temos no topo dessa hierarquia o homem branco, e na base, na posição mais inferior, a mulher negra.
Thiago Torres [Chavoso da USP] reforça: em manifestações e protestos contra a violência policial nas periferias, a cada vez que morre nas mãos da polícia militar mais um jovem negro, não se encontram presentes os partidos e coletivos de esquerda para além daqueles diretamente envolvidos na questão imediata, como os movimentos de mães negras. Se a esquerda, enquanto corpo organizacional, não se faz presente nesses espaços, de nada adianta cobrar consciência de classe do chamado "pobre de direita" - pois é a direita, com seu pensamento conservador cristão, que está presente nos campos de luta e sobrevivência dos mais pobres.
E se as organizações de esquerda não ocupam esse espaço, onde a mulher negra e pobre vai buscar alento? Onde tem a chance de se reconhecer como pertencente a uma comunidade? Manuela D'Ávila, no debate, resume: na igreja evangélica.
Mas é óbvio que a igreja evangélica, bem como o cristianismo como um todo, é uma instituição colonial. Foi o cristianismo a base da dominação e exploração indígena, por meio da figura dos jesuítas - cuja representação hegemônica como doces e caridosos homens de Deus escarnece violentamente dos povos originários.
A igreja evangélica contemporânea, com sua teologia da dominação, seus esforços agressivos para converter toda e qualquer pessoa incapaz de se opor a eles com o mesmo grau de agressividade, sua representação política preocupantemente exacerbada, e sua ocupação indevida de espaços públicos num país que deveria ser laico (e nunca o foi de fato, vide os crucifixos em repartições públicas e a frase "Deus seja louvado" estampada nas notas de Cruzado e de Real desde 1986), reforça a dominação colonial.
Também Lélia González se debruça sobre a questão do negro evangélico: "é uma busca de perspectiva" (p. 238). A autora chama atenção para a chamada apropriação cultural das tradições negras, sobretudo das tradições de uma religiosidade de matriz africana, enquanto faceta da suposta democracia racial vigente no Brasil: os brancos acham bonito frequentar a escola de samba, ver a praia cheia de gente preta vestida de branco no dia 31 de dezembro.
Mas nenhuma medida concreta é implementada pela classe dominante, essa sempre branca: nem para diminuir a desigualdade social e dar oportunidades de ascensão às pessoas negras, nem para reconhecer a cultura negra com a devida reverência, a mesma dispensada à produção cultural ocidental, já que "a produção cultural indígena, ou africana, ou afro-brasileira é vista segundo a perspectiva do folclore, seja como produção menor ou produção artesanal" (p. 247).
Assim, a pessoa marginalizada termina por buscar - e encontrar - na igreja uma comunidade que lhe acolha. O problema é que esse tipo de instituição, conservadora por excelência, reproduz, nas palavras de Lélia González, "o esquemão da sociedade brasileira": "todo mundo se coloca como cristão, como crente, somos todos irmãos, e o problema é com Cristo, Cristo é que resolve nossos problemas, Deus é quem resolve os nossos problemas, Deus é que vai fazer e acontecer" (p. 238). E as origens africanas seguem sendo demonizadas pelo pensamento cristão, e o preto vai sendo aceito, desde que se identifique como branco.
Certas reivindicações começam a parecer elitistas, pois as grandes massas vão se tornando conservadoras.
Um exemplo dado por Thiago Torres [Chavoso da USP] no debate foi a questão do veganismo como pauta popular, sob o tema "ecossocialismo ou extinção": para ele, conceitos como a consciência ecológica e a denúncia ao chamado racismo ambiental - a qual mantém concentradas nas regiões de maior ausência de políticas públicas, como moradia adequada e saneamento básico, as populações negra e indígena - vêm sendo erroneamente tratados como preocupação de classe média. Fica evidente que é o oposto: os maiores prejudicados pela crise ambiental são o povo negro e indígena.

E as questões que afetam diretamente a base da pirâmide social, nessa hierarquia rígida que molda o Brasil conforme tão bem descrita por Lélia González, afetam diretamente toda a população, até o topo da pirâmide.
Essa lógica se aplica ao modo como enxergamos o ensino das línguas de prestígio no Brasil:
enquanto aprender inglês for coisa de rico, aprender francês, coisa pra gente metida, e aprender italiano, coisa de branco que se acha europeu, não sairemos do lugar.
Entretanto, enquanto o foco do ensino de línguas no Brasil for replicar ou adaptar os métodos importados, pensados especificamente para que os subalternizados como nós continuem endeusando "o nativo" e se convençam das maravilhas de "ir pra fora", o povo brasileiro continuará distante do conhecimento das línguas de prestígio.
E vai se normalizando o apagamento das reivindicações de base, como a superação de toda e qualquer desigualdade racial no nosso país, tão profundamente miscigenado, ou o acesso a expandir recursos linguísticos, e, portanto, visões de mundo. Nós, de raízes não-brancas, somos sistematicamente destituídas de voz. Nas palavras de Guilherme Terreri [Rita von Hunty], o projeto da esquerda vai se transformando na proposição de uma nova direita, de um reformismo muito moderado.
É como se estivéssemos desistindo de proposições de transformação radical. Em analogia de Vladimir Safatle no debate, é como se houvesse um prédio, muito mal construído, onde moram algumas pessoas, e outras moram na rua, do lado de fora. O pensamento tido como de esquerda tem se preocupado mais em criticar os que estão dentro e colocar lá os que estão fora, do que em derrubar o prédio para construir outro muito melhor, onde caiba todo mundo e todos os apartamentos sejam do mesmo tamanho.
Essa mentalidade pode ser explicada pelo conceito de hegemonia cultural, de Gramsci, conforme lembra Terreri [Rita von Hunty]: o senso comum é de direita. Porque as ideias dominantes são as ideias da classe dominante, ou aquelas que justificam as práticas da classe dominante. E assim vai se normalizando a impossibilidade de contestar esse senso comum. O moderado, o centro, se torna o novo normal da esquerda.
E de repente estamos lamentando o fim do mandato de um chefe de Estado moderadamente progressista, e celebrando a eleição de um novo chefe de Estado quase tão progressista quanto o anterior: o Papa católico, mais um cristão endeusado como indivíduo bondoso, numa típica representação neoliberal do identitarismo conforme apontada por Douglas Barros. Em vez de comemorar a cândida bondade de quem confere a alguns de nós um espacinho modesto no tal prédio decadente, deveríamos é estar derrubando essa estrutura desigual, derrubando a hegemonia cristã que sempre reforçou os valores da branquitude europeia e o mito da democracia racial no Brasil.
Se o discurso hegemônico se revela em múltiplas faces da construção da sociedade, uma delas não poderia deixar de ser a língua. É por isso que o acesso ao conhecimento de diversas línguas precisa ser tomado seriamente como política pública para as massas:
para expandir as possibilidades de que o povo brasileiro interprete o mundo que o cerca sob as mais diversas perspectivas. Para que mulheres, pretes, LGBTs+ não mais estejam relegados a papéis marginais na pirâmide social. Para que o conhecimento de outras formas de organização social, também moldadas por outras línguas, possa embasar decisões sobre como agir na nossa sociedade.
No entanto, para que isso aconteça, é necessário que nós - falantes de línguas de prestígio - nos coloquemos em nosso papel de agentes sociais. É necessário romper com a posição que nos foi predeterminada pela classe dominante, de quem representa a superioridade europeia (ou, mais recentemente, estadunidense). É necessário não mais nos identificarmos com o colonizador, porque somos subalternizados que romperam uma barreira colonial e desejam levar mais dos seus consigo.
Como quem constrói junto um prédio onde caiba todo mundo.
É considerando todos esses princípios que precisamos ensinar língua, e é por isso que a gente defende por aqui a ideia de ensinar Além da Língua. Porque direitos linguísticos também são direitos humanos, capazes de movimentar toda a estrutura da sociedade quando conferidos a quem está na base da pirâmide. Portanto, também são papo de esquerda.
![Eu e Guilherme Terreri [Rita von Hunty]](https://static.wixstatic.com/media/7e4652_26083112021041e9b3ec7d9fcae0fcb4~mv2.jpg/v1/fill/w_720,h_854,al_c,q_85,enc_avif,quality_auto/7e4652_26083112021041e9b3ec7d9fcae0fcb4~mv2.jpg)
Baseado em:
BARROS, Douglas. O que é identitarismo? São Paulo: Boitempo, 2024.
BUTLER, Judith. Quem tem medo do gênero? Trad. de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2024.
GONZÁLEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Orgs: Flavia Rios e Márcia Lima. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.