Já sabemos que a Educação Linguística é uma proposta de ensino de línguas que vai além do tradicional, isto é, da transmissão de regras gramaticais e do cumprimento de tarefas comunicativas.
Existem muitos recursos para trabalhar com a Educação Linguística, de modo a garantir uma aprendizagem de línguas significativa. Vamos discutir um deles: a intercompreensão.
A definição mais comum de intercompreensão é a competência de compreender uma língua sem tê-la aprendido formalmente, com base apenas na transferência de palavras conhecidas em outras línguas.
Assim, a intercompreensão proporciona rápido acesso a outras línguas e, potencialmente, a outras realidades culturais, sem a necessidade de passar anos estudando uma única língua até dominar as competências básicas, para somente então vivenciar a realidade que aquela língua proporciona.
Existem outras duas definições para a intercompreensão: ela pode ser vista como estratégia de comunicação, quando duas pessoas não conhecem nenhuma língua em comum e falam suas respectivas línguas maternas, ou como um método para aprender línguas.
No ensino de línguas, a intercompreensão como método ou abordagem parte de termos e estruturas conhecidas em outras línguas, a fim de construir a compreensão da língua-alvo. Ela traz as seguintes características:
consideração do plurilinguismo como estratégia, meio e fim;
didatização dos espaços de contato entre as línguas, considerando a contrastividade;
valorização e exploração sistemática da atividade cognitiva de quem aprende, encorajando a responsabilização sobre a própria aprendizagem;
aceitação da dissociação temporal e do desequilíbrio entre as competências linguísticas.
Se o plurilinguismo é a premissa da aula de língua baseada na intercompreensão, isso significa que não há espaço para a exclusão de recursos linguísticos. Muito pelo contrário! Todos eles são sempre bem-vindos.
Justamente por isso, outro ponto-chave do trabalho com a intercompreensão é a autonomia de quem aprende: se não há restrições autoritárias a qualquer recurso que faça parte da história de cada aprendiz, o papel docente nesse percurso de aprendizagem é orientar, e não transmitir o conhecimento como se fosse um objeto.
Assim, a intercompreensão faz com que o objetivo da aprendizagem deixe de ser uma suposta competência comunicativa perfeita na nova língua, deslocando-o para o desenvolvimento de um repertório linguístico-comunicativo pautado pela diversidade.
Bem, será que apresentar as principais vantagens da intercompreensão significa defendê-la como método infalível para o ensino de línguas?
É claro que não!
Conforme temos debatido à exaustão por aqui, não existe método perfeito, pois o sucesso das estratégias adotadas depende de quem está aprendendo. No Brasil, por exemplo, dado o baixo conhecimento de outras línguas que não o português brasileiro pela população em geral, não são muitas as opções de línguas das quais partir em um ensino pautado na intercompreensão.
De qualquer forma, a intercompreensão tem o potencial de promover a autonomia de aprendizes, de despertar a consciência linguística por meio da contrastividade, e de maximizar as oportunidades de aprendizagem – três das macroestratégias pós-método!
Vale a pena refletir: será que dá pra inserir elementos da intercompreensão nas suas aulas de língua?
Mesmo em se tratando de aprendizes que não tiveram oportunidade de estudar outras línguas anteriormente, é possível começar com dois passos simples, porém revolucionários.
O primeiro deles é jamais reprimir, e sim, incentivar, a comparação com outras línguas durante a aula. Se você acompanha este site há algum tempo, já sabe que esta é uma condição primordial para a Educação Linguística defendida aqui:
O segundo passo é resgatar algo que acabamos esquecendo, em meio a tantas aulas que precisamos preparar, e a tantas novidades do ensino online que precisamos acompanhar: antes de docentes, somos aprendizes.
Todo mundo aqui, sem exceções, aprende língua: a começar pela nossa língua materna, que é viva, orgânica, e, quando pensamos tê-la dominado, surgem mudanças que nos obrigam a superar uma série de conceitos, agora ultrapassados!
Para praticar a Educação Linguística que acolhe a intercompreensão como possibilidade, é importante recuperarmos uma postura ativa de aprendizagem. Quantas palavras do inglês ou do alemão vieram do francês? Ou melhor: quantas palavras das línguas anglo-germânicas têm origem latina, embora a pronúncia tenha sido modificada?
E no nosso português, quantas palavras de uso corrente vieram do inglês? Quantas delas mantiveram seu significado, e quantas outras tiveram o significado modificado, apesar de ainda escritas da mesma forma?
A abertura para a intercompreensão na aula de língua exige de quem ensina que tenha alguns exemplos na ponta da língua. Assim, ganha quem aprende, por evoluir mais rápido e de forma mais consciente e autônoma; e também ganha quem ensina, por resgatar a curiosidade sobre fatos linguísticos, que, em primeiro lugar, nos levou a escolher essa profissão.
Baseado em:
ANDRADE, A. I.; MARTINS, F. Em torno do conceito de intercompreensão: desafios e possibilidades na formação de pós-graduada de professores. In: MORDENTE, O. A.; FERRONI, R. (Eds.). Novas tendências no ensino/aprendizagem de línguas românicas e na formação de professores. São Paulo: Humanitas, 2015, p. 158-188.
ARAÚJO E SÁ, Maria Helena. A intercompreensão em didática de línguas: modulações em torno de uma abordagem interacional. Linguarum Arena, v. 4, 2013, pp. 79-106.
BRITO, Karin S. A promoção da competência multilíngue na escola: encorajando possibilidades. Calidoscópio, v. 11, n. 1, 2013, 63-69.
Este texto foi escrito em linguagem neutra de gênero. Doeu? ;)
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