O que fazer quando aprendizes se expressam em sua língua materna durante a aula de inglês, espanhol, alemão, francês, italiano?
A atitude padrão de quem lidera a aula é olhar feio, pedir pra repetir a mesma fala na língua alvo, ou, na melhor das hipóteses, ignorar! Não é?
E o argumento padrão que embasa essa atitude é que o único jeito de acostumar a ouvir e entender a nova língua é excluindo completamente o português da aula.
Porém, se deixarmos de lado as atitudes padrão e os argumentos padrão, reproduzidos de forma acrítica de modo a alimentar uma indústria de métodos falidos, podemos perceber uma série de argumentos a favor do uso do português na aula de outras línguas.
O primeiro passo é entendermos que as línguas não são armazenadas em separado na mente humana. Existe um conjunto de todos os modos possíveis de formular mensagens, incluindo línguas, dialetos, estilos, registros, códigos e rotinas, chamado repertório linguístico.
Expandindo o conceito de repertório linguístico, Pennycook e Otsuji falam em repertórios espaciais, um conceito que estabelece relações entre dois pontos:
- os repertórios formados ao longo da trajetória individual de quem fala;
- os espaços em que esses recursos linguísticos são desenvolvidos ou mobilizados.
Deu pra entender que não existe uma separação bem delimitada entre as línguas na nossa mente? Essa ausência de separação tem a ver com o fato de que as línguas também não são unidades isoladas na própria sociedade, conforme já discutimos aqui.
Infelizmente, o acesso ao ensino de línguas no Brasil é péssimo. Isso inviabiliza a implementação de estratégias de ensino plurilíngue – ou translíngue – em nosso país: via de regra, só se aprende na escola pública poucas noções de inglês, e, no máximo de espanhol.
Por isso, vale a pena conhecermos algumas estratégias desse tipo aplicadas em outros países, para compreendermos os fundamentos da prática.
Os autores alemães Hufeisen e Neuner recomendam que a primeira aula de um curso de língua seja dedicada a despertar a consciência acerca de fenômenos linguísticos e de seu próprio processo de aprendizagem. Um dos meios sugeridos para atingir esse propósito é encontrar palavras e expressões que sejam parecidas em mais de uma língua e tentar descobrir seu significado. Parece divertido!
Essa atividade é indicada para desenvolver a competência de intercompreensão. Bem difundida no Brasil na área de ensino de línguas românicas como o francês e o italiano, a intercompreensão é popularmente entendida como o ato de falar a própria língua e compreender a língua do outro.
Meissner afirma que a competência intercompreensiva não é apenas a habilidade encontrar similaridades entre línguas de forma mecânica, e sim, diz respeito à expansão de todo um repertório linguístico e cultural: aquilo a que chamamos repertório espacial.
Isso também influencia, inevitavelmente, o modo como falantes lidam com a própria língua materna! Assim, tem-se uma experiência riquíssima de aprendizagem e desenvolvimento.
Outro modelo de ensino translíngue é a abordagem de Ensino Integrado de Língua e Conteúdo [Content and Language Integrated Learning], conhecida como CLIL ou ensino bilíngue. Trata-se de usar a nova língua para ensinar disciplinas, sendo essa língua tanto um objeto de aprendizagem quanto um meio de comunicação para aprender conteúdos disciplinares.
O CLIL é bem difundido no Brasil, e vem ganhando maior atenção desde a publicação das novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Bilíngue. O problema é que essa rica modalidade de ensino só está disponível em colégios de elite, e em raros contextos onde se falam línguas de imigração.
Por outro lado, algumas das mais caras escolas privadas ditas "bilíngues" trabalham, na verdade, com um ensino monolíngue! Ou seja, pretendem excluir por completo o português das aulas, descartando assim uma série de conexões neurais que poderiam ser estabelecidas por quem aprende.
Um quarto modelo consiste no desafio de ensinar diretamente o plurilinguismo, isto é, trabalhar simultaneamente duas ou mais línguas no mesmo currículo, tendo como pilares a consciência linguística e as estratégias de aprendizagem, criando e promovendo sistematicamente a aprendizagem simultânea de mais de uma língua. É a proposta perfeita para escolas que ensinam duas línguas ou mais: em vez de separá-las, uni-las!
Bem, mas o que acontece quando forçamos nossa turma a entender aquilo que estamos tentando dizer, sem traduzir nenhuma para o português, em hipótese alguma?
Na melhor das hipóteses, a prática das rotinas de sala de aula levara à compreensão de certas fórmulas, mesmo que não se entenda palavra por palavra – mais ou menos como as crianças pequenas adquirem a língua materna.
Aliás, essa comparação com as crianças pequenas é o argumento preferido das pessoas que defendem o ensino monolíngue... ignorando por completo que já não se tem a mesma estrutura cerebral dessas crianças, muito menos a exposição à nova língua 24 horas por dia!
Porém, na pior das hipóteses, quem não entende continuará sem entender. Mesmo depois de perguntar diversas vezes, mesmo depois de ouvir mil explicações e exemplos, e de presenciar mímicas esdrúxulas.
Não é difícil entender que essa situação gera grande constrangimento em toda a turma, e só aumenta a ansiedade de quem não entende!
Há muito tempo já se sabe que o fator afetivo exerce papel fundamental na aprendizagem. Quanto maior o desconforto, maior o bloqueio!
E nós sabemos muito bem que haverá ao menos uma pessoa assim na turma: sem muita aptidão para línguas, estudando por obrigação, ou com pouco tempo para dedicar aos estudos, muitos compromissos, cujo cansaço domina a aula.
Será que retirar oportunidades dessa pessoa, promovendo sua defasagem em relação a quem tem maior facilidade, está de acordo com a nossa missão de ensinar?
Essa postura tem a ver com uma cultura escolar de punitivismo, reproduzida há séculos no sistema escolar brasileiro – que, não coincidentemente, está bem longe de ser bom...
É hora de transcendermos essa ideia profundamente ultrapassada do conhecimento armazenado em caixinhas isoladas. Se existe uma competência humana plurilíngue, ou translíngue, por que alguém perderia tempo insistindo no monolinguismo?!
Claire Kramsch nos lembra que, mais importante do que aprender os elementos de um único sistema simbólico, é aprender a mover-se entre línguas e negociar códigos que são encontrados no mundo real. Aprender uma língua é adquirir competências multilíngues e multiculturais, mesmo quando o objeto de instrução é um único sistema linguístico.
Bem, mas isso tudo significa que eu devo traduzir imediatamente qualquer termo ou palavra na aula, sempre que alguém não compreender o que significa, em vez de tentar empregar outros recursos?
Não!
Significa justamente o contrário: que é hora (ou melhor, já passou da hora) de superarmos essa dicotomia entre usar ou não o português. O português é apenas um recurso, tanto quanto a mímica e os desenhos na lousa. Nem melhor, nem pior.
Por que incluir algumas pessoas e excluir outras? Por que privar aprendizes de uma rica experiência de associações mentais? Por que fingir que é bilíngue o ensino monolíngue, de forma contraditória e excludente?
Não há motivo algum.
Baseado em:
GRILLI, Marina. Por que usar a LM na aula de LE: do Plurilinguismo ao Translinguismo. Revista Linguagem em Foco (no prelo).
Inspirado em:
HUFEISEN, Britta; NEUNER, Gerhard. Mehrsprachigkeitskonzept –Tertiärsprachenlernen – Deutsch nach Englisch. Estrasburgo: Conselho da Europa, 2003.
HUFEISEN, Britta. Whole language policy. Additional thoughts on a prototypical model. Translation of Hufeisen, Britta. Gesamtsprachencurriculum: Überlegungen zu einem prototypischen Modell. In: BAUR, Rupprecht; HUFEISEN, Britta (Orgs.). In: “Vieles ist sehr ähnlich”: Individuelle und gesellschaftliche Mehrsprachigkeit als bildungspolitische Aufgabe. Baltmannsweiler: Schneider Hohengehren, 2011, p. 265-282.
KRAMSCH, Claire. Authenticity and legitimacy in multilingual SLA. Critical Multilingualism Studies, v. 1, n. 1, 2012, p. 107-128.
MEISSNER, Franz Joseph. Teaching and learning intercomprehension: a way to plurilingualism and learner autonomy. In: DE-FLORIO HANSEN, Inez (Org.). Towards Multilingualism and the Inclusion of Cultural Diversity. Kassel: Kassel University Press, 2001, p. 37-58.
PENNYCOOK, Alastair; OTSUJI, Emi. Metrolingualism: Language in the city. New York: Routledge, 2015.
Este texto foi escrito em linguagem neutra de gênero. Doeu? ;)
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