Do plurilinguismo ao translinguismo
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Do plurilinguismo ao translinguismo

Atualizado: 3 de dez. de 2020

O translinguismo é mais um conceito fundamental da Linguística Aplicada, e sua compreensão faz toda a diferença no trabalho com a Educação Linguística.


Mas, antes de chegar ao translinguismo, vamos retomar alguns termos básicos para essa discussão:


- monolinguismo é o conhecimento de uma única língua;

- bilinguismo e plurilinguismo se referem ao conhecimento de duas ou mais línguas;

- multilinguismo é a coexistência de duas ou mais línguas em uma mesma comunidade ou ambiente.

Perceba que essas definições têm a ver com o "conhecimento", de forma genérica, e não com a habilidade de falar uma ou mais línguas!


O conhecimento linguístico engloba múltiplas competências, e falar é apenas uma delas.


Porém, aqui vamos nos referir a quem dispõe de qualquer conhecimento em determinada língua como falante, pois é o termo mais comum.


Se compreendermos que o falante, ao comunicar-se, utiliza recursos linguísticos disponíveis em seu repertório espacial conforme as situações em que se encontra, fica clara a necessidade de um termo melhor do que plurilinguismo para descrever as práticas envolvendo esse repertório.


Afinal, o termo plurilinguismo implica a pluralidade de línguas separadas. Uma alternativa a esse termo é o conceito bakhtiniano de heteroglossia: um diálogo dentro daquilo que comumente se denomina língua, ou entre diferentes línguas.


Canagarajah, por sua vez, propõe o termo prática translíngue, porque o prefixo trans permite pensar a competência comunicativa para além das barreiras das línguas predefinidas, combinando diferentes recursos em interações a fim de construir sentido. Em contraposição, os termos multi- e plurilinguismo retratam um certo grau de separação entre línguas.


Ou seja: prática translíngue é a possibilidade de usar os códigos linguísticos já estabelecidos para criar novos códigos linguísticos, que incluam todos os recursos verbais e não-verbais disponíveis para o falante em seu repertório espacial.


Assim, a perspectiva translíngue defende que uma "língua" não passa de um co-produto da comunicação. O translinguismo é uma interpretação mais fluida da língua e do letramento, na qual o falante se move entre fronteiras reais e imaginárias.


Acontece que certas palavras se relacionam a certos locais e comunidades, e, assim, formam rótulos distintos para identidades territorializadas. Isto é, a língua passa a existir ao emergir na comunicação, e não anteriormente a esse momento.


Esse pensamento pode parecer radical à primeira vista – porém, a especialista em estudos de gênero Judith Butler afirma que as regras que constituem o sujeito não o determinam, pois a significação não é um ato fundador, e sim um processo regulado de repetição. Em outras palavras, nós tornamo-nos sujeitos ao moldar-nos repetidamente a categorias predefinidas.


Com as línguas, ocorre o mesmo: elas não são entidades cuja existência precede seu uso!


Línguas são os produtos sedimentados de atos de identidade repetidos.


Assim, a prática translíngue é a possibilidade de empregar códigos linguísticos preestabelecidos para criar códigos novos, que incluam todos os recursos semióticos verbais e não-verbais disponíveis a qualquer falante em seus repertórios espaciais, sendo a língua falada apenas um deles.


Dessa forma, é possível transcender o chamado ensino de línguas, e passar a praticar Educação Linguística: reconhecendo que aprendizes precisam aprender a mover-se entre línguas e negociar códigos, gêneros, registros e discursos que são encontrados no mundo real. E que essa negociação é mais importante do que aprender regras fixas de um único sistema simbólico.


Aprender uma língua é adquirir competências multilíngues e multiculturais, mesmo quando o objeto de instrução é um único sistema linguístico padronizado. E é isso que devemos ter em mente ao iniciar qualquer aula de língua: muito além de regras gramaticais ou fórmulas comunicativas, o objetivo é desenvolver em quem aprende uma competência translíngue.

 

Baseado em:


BAKHTIN, Mikhail. Discourse in the Novel. In: Holquist, Michael (Org.). The Dialogic Imagination. Austin: University of Texas Press, 1981, pp. 259-422.


BUSCH, Brigitta. Expanding the Notion of the Linguistic Repertoire: On the Concept of Spracherleben - The Lived Experience of Language. Applied Linguistics, v. 38, n. 3, 2015, pp. 340-358.


BUTLER, Judith. Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. London: Routledge, 1990.


CANAGARAJAH, Suresh. (Ed.). Literacy as Translingual Practice: Between Communities and Classrooms. New York: Routledge, 2013.

CANAGARAJAH, Suresh. Translingual Practice as Spatial Repertoires: Expanding the Paradigm beyond Structuralist Orientations. Applied Linguistics, v. 39, n. 1, 2017, pp. 31-54.


ESPÍRITO SANTO, Diogo Oliveira; SANTOS, Kelly Barros. A invenção do monolinguismo

no Brasil: por uma orientação translíngue em aulas de “línguas”. Calidoscópio, v. 16, n. 1, 2018, pp. 152-162.

KRAMSCH, Claire. Authenticity and legitimacy in multilingual SLA. Critical Multilingualism Studies, v. 1, n. 1, 2012, pp. 107-128.


PENNYCOOK, Alastair. Performativity and Language Studies. Critical Inquiry in Language Studies: An International Journal, v. 1, n. 1, 2004, pp. 1-19.


Este texto foi escrito em linguagem neutra de gênero. Doeu? ;)

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