Em época de polarização política exacerbada, qualquer coisa vira motivo pra discussão séria, egos inflamados, crises de ansiedade, e a infame frase "descansa, militante"... é ou não é?
Mesmo assim, vou me arriscar a mexer nesse vespeiro da linguagem neutra, em voga nas redes sociais brasileiras há algumas semanas – embora não tenha sido inventada agora, não, como muita gente prefere acreditar.
Trabalhar com Educação Linguística, dentro do escopo da Linguística Aplicada, é reconhecer que língua e sociedade não se separam. E que toda questão social é pertinente ao âmbito da língua.
Portanto, não existe a opção de ignorar os conflitos que vão surgindo na sociedade – não se quisermos educar linguisticamente para o futuro, abandonando o ensino de línguas rígido e ultrapassado, o que é justamente a premissa de todo este site.
Rita von Hunty nos lembra que, desde Freud e Lacan, é sabido que o sujeito se constitui através da linguagem: é a linguagem que molda as visões de mundo do sujeito e suas possibilidades de compreensão desse mundo.
Isso acontece porque o ser humano sente necessidade de nomear as coisas que percebe, de modo que praticamente não existe distinção entre perceber e nomear.
Além disso, conforme já discutimos aqui, a filósofa Judith Butler afirma que o sujeito não é determinado pelas regras que o constituem. Em vez disso, a construção de identidade é um processo regulado de repetição, ou melhor, de adaptação repetida a categorias predefinidas.
Em outras palavras, nenhuma das categorias que conhecemos é natural: todas elas são invenções humanas!
Se essa afirmação tão radical parece razoável, mas somente enquanto estamos falando das Humanidades, vale a pena buscar informações sobre propostas de decolonização do conhecimento em outras áreas, como as etnociências e a etnomatemática.
Voltando à linguagem, o fato de a nossa língua brasileira utilizar o genérico masculino diz bastante sobre a forma como as mulheres são vistas na nossa sociedade – e, ao mesmo tempo, reforça constantemente essa visão.
Crescemos ouvindo frases como "Deus criou o homem à sua imagem e semelhança", "o cão é o melhor amigo do homem". Aprendemos que homem é sinônimo de ser humano, embora as mulheres estejam em maior número na população brasileira – e isso porque ainda nem falamos dos outros gêneros que existem...
O fato de não percebermos esse apagamento das mulheres na linguagem indica justamente o quanto ele é sério, pois já nem nos incomoda. Porém, nas palavras da ativista LGBT Maira Reis, por que tudo tem que se voltar aos homens, e as mulheres que se encaixem dentro do padrão deles?
Recentemente, vêm ganhando visibilidade as reivindicações do reconhecimento de gêneros não-binários, isto é, de pessoas que não se identificam como mulheres nem como homens: pessoas agênero, bigênero, gênero fluido, entre outras.
Há quem fique desconfortável com todas essas nomenclaturas, e tudo bem. O desconhecido sempre causa algum nível de desconforto. O que não está tudo bem é reproduzir discursos do tipo "no meu tempo não tinha essas coisas", pois esse pseudoargumento tem ao menos duas falhas:
- se antigamente não tinha essas coisas, hoje tem, pois as pessoas e as sociedades estão em constante mudança. Adapte-se!
- será que não era assim, ou será que essas pessoas não se sentiam à vontade para se expressar, graças a discursos preconceituosos como o seu?
É hora de abraçarmos novos paradigmas de compreensão do mundo e de expressão dessa compreensão, através da nossa língua.
Conforme reconhece o Manifesto Ile para uma comunicação radicalmente inclusiva, o próprio estranhamento que a palavra ile causa nos ouvidos das pessoas já é parte da mudança: nos força a ter que lidar, lembrar e reconhecer que nossos padrões não são estáticos.
Além desse manifesto, que marcou a proposta de empregar os pronomes neutros ile/dile, este guia completíssimo traz as propostas el/del, ilu/dilu, elu/delu, e outras dicas como usar a letra E para substituir vogais temáticas (em vez de X ou @).
É confuso? Acesse os links, informe-se, pratique aos poucos.
Procure não ser aquela pessoa preciosista que faz campanha contra a energia elétrica, só porque acha um charme a lamparina a gás!
E se, mesmo diante de todas essas informações, você acredita que um texto em linguagem neutra pareceria estranho e artificial, bem... todos os textos deste site, com uma única exceção (e não vou dizer qual), foram escritos em linguagem neutra.
Aposto que você não tinha percebido.
Inspirado em:
BUTLER, Judith. Gender trouble: Feminism and the subversion of identity. London: Routledge, 1990.
Este texto foi escrito em linguagem neutra de gênero. Doeu? ;)