Desde meados da década de 1980, o conceito de letramento trouxe a perspectiva sociolinguística para o ensino da leitura e da escrita. A denominação letramento crítico havia sido cunhada pouco tempo antes, fortemente influenciada pelo pensamento de Paulo Freire.
A premissa do letramento crítico é que a leitura do mundo precede a leitura da palavra.
Em outras palavras, o questionamento permeia todo o processo de aprendizagem da leitura e da escrita, não sendo iniciado somente após a aquisição de letras, sílabas e frases descontextualizadas.
A proposta é transcender a leitura e a escrita das palavras, tomando como ponto de partida o âmbito visual, cultural, midiático, científico, emocional... entre outros. Afinal, a "leitura" de todas essas dimensões da comunicação humana não pode ser dissociada da leitura da palavra escrita.
Há quem proponha uma distinção entre letramento operacional, cultural e crítico. Essa nomenclatura tem bastante a ver com as dimensões da língua enquanto sistema, discurso e ideologia: todas elas estão sempre interligadas, e considerar apenas um deles em isolado dos demais pode acabar levando a uma interpretação rasa do fenômeno linguístico.
Assim, fica claro que multiletramentos não têm a ver com a mera digitalização de recursos educativos. Eles estão fundamentados sobre duas bases: o multiculturalismo e a multimodalidade.
O multiculturalismo deve ser sinônimo de interculturalidade, isto é, de estímulo à competência de negociação das diferenças.
É necessário superar uma abordagem assimilacionista, em que as diferenças são negadas e o objetivo é homogeneizar a sociedade; também é necessário superar uma abordagem essencialista, em que se ignora a heterogeneidade de indivíduos dentro dos grupos baseados na origem, na etnia, no gênero, entre outros.
Quanto à multimodalidade, esta se refere à diversidade de meios de comunicação e interpretação do mundo. E essa diversidade não se resume à internet!
Letramento visual é saber interpretar uma imagem; letramento musical é reconhecer a música como meio de comunicação e não somente como expressão estética; letramento midiático é compreender que certas regras de escrita na internet não se aplicam a gêneros textuais considerados "tradicionais" – e vice versa, para o desgosto do conservadorismo... memes, funk carioca e modificações corporais estão entre os meios de comunicação que escapam ao tradicional.
Não é à toa que o legado de Paulo Freire é hoje demonizado por conservadores, que pretendem reservar às elites o direito a uma educação crítica. Os multiletramentos só podem funcionar de maneira crítica. E por isso são o extremo oposto daquilo a que Freire chamava educação bancária: conteudista, acrítica e homogeneizadora.
Se nenhuma das formas de expressão humana é menos complexa ou menos válida do que a leitura e a escrita das palavras, como foi que nos deixamos convencer de que a tão aclamada alfabetização tem maior valor do que todos os outros conhecimentos e letramentos possíveis?
Uma das maiores autoridades em Multiletramentos do Brasil, a professora Joyce Fetterman, acaba de publicar o livro Projetos de multiletramentos no ensino de línguas. O conteúdo do livro será cuidadosamente trabalhado na disciplina ministrada pela professora, na Especialização em Educação Linguística que terá início em março/2025.
Para saber mais sobre o curso e receber gratuitamente o livro na versão digital, é só clicar aqui.
Inspirado em:
CANDAU, Vera Maria. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, v. 13, n. 37, 2008, pp. 45-56.
COPE, Bill; KALANTZIS, Mary. Multiliteracies: the beginnings of an idea. In: COPE & KALANTZIS, Multiliteracies, 2015, pp. 3-8.
FETTERMAN, Joyce V.; LIMA, Raphaela S. A. Projetos de multiletramentos no ensino de línguas. São Paulo: Pimenta Cultural, 2024.
TAKAKI, Nara H. Letramentos na Sociedade Digital: Navegar é e não é preciso. Jundiaí/SP: Paco Editorial, 2012.
Este texto foi escrito em linguagem neutra de gênero. Doeu? ;)