Colonialidade e monolinguismo
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Colonialidade e monolinguismo

Por que o povo brasileiro considera tão difícil aprender outra língua? Por que existem tantos cursos de inglês, espanhol e outras línguas europeias, e tão poucas pessoas que saem desses cursos com um nível satisfatório de conhecimento e autoconfiança na expressão oral e escrita?


Essas questões devem estar no centro de qualquer proposta de elaboração de curso de língua e de formação de professores de língua. Focar na prática acrítica das tais competências sugeridas pelo Quadro Comum Europeu, em métodos importados ou abordagem comunicativa, claramente não está funcionando.

Mas por que não está funcionando? Em outras palavras, por que o povo brasileiro não tem acesso ao conhecimento de línguas de prestígio? Para encontrar respostas, é preciso olhar um pouco para a História - mais precisamente a história das línguas de prestígio.


Com a fragmentação do Império Romano do Ocidente entre os séculos VII e IX, surgiram as línguas neolatinas, de modo a enfraquecer o papel do latim enquanto vernáculo e mantê-lo somente como língua de veiculação da cultura intelectual e religiosa. A restauração voluntária da cultura latina na Europa, iniciada no século IX, transformou a gramática latina, simultaneamente, em uma técnica pedagógica de aprendizagem das línguas e um meio de descrevê-las. Assim, o latim assumiu uma posição de segunda língua.


Já durante a era das navegações, os países descobertos eram considerados puro e simples objeto de espoliação pelos europeus. Quanto às línguas e culturas dos povos nativos, o projeto era transformá-las em objetos de conhecimento europeu e daí veio a categorização moderna de línguas enquanto unidades isoladas, que serviu de base para conceitos como língua materna e língua oficial de um país. O processo de invenção das línguas fez parte do projeto de colonização, pois a premissa colonial era a de que a América e a África pré-coloniais eram como lousas em branco, que precisavam ser preenchidas com categorias europeias.


Consequentemente, outras culturas e modos de expressão foram não somente desconsiderados no processo de colonização, mas também sistematicamente exterminados. Como era necessário estabelecer uma conexão entre sujeito, nação e território, as línguas tiveram de ser inventadas (CANAGARAJAH, 2013).


Nesse sentido, o escritor e músico angolano Kalaf Epalanga afirma que a língua é a primeira ferramenta de opressão, pois até mesmo os nomes dos indivíduos colonizados foram trocados.


Voltando ao critério de língua enquanto sistema provido de uma gramática estabelecida, Veronelli (2015, p. 124) observa que o paradigma do colonizador é a monolíngua: a comunicação de mão única, por parte do colonizador. Não poderia haver comunicação de mão dupla entre colonizador e colonizado, já que as formas de expressão do colonizado não eram sequer consideradas línguas pelo colonizador. Essa constatação demonstra o quão violenta e desumanizadora é a colonialidade da língua.


Tal aspecto da colonialidade é perceptível na medida em que reconhecemos praticamente seis línguas do mundo como línguas de prestígio – inglês, espanhol, francês, italiano, alemão e português – enquanto milhares de outras línguas são consideradas de menor prestígio, proibidas, dizimadas. Entretanto, assim como qualquer outro aspecto da colonialidade, ela não se resume à sua faceta perceptível. A faceta imperceptível da colonialidade linguística é aquela segundo a qual somente a língua do colonizador era por ele considerada, de fato, língua: trata-se do monolinguismo do colonizador. Essas concepções refletem a premissa, mencionada anteriormente, de que a América e a África pré-coloniais eram como lousas em branco.


A colonialidade linguística é uma realidade que se abate sobre o povo brasileiro desde a invasão dos portugueses, tendo moldado toda a nossa percepção sobre o valor desta ou daquela língua. Em outras palavras, o ensino de línguas é político, é ideológico; a ausência de um olhar crítico para as relações de poder nas quais se inserem o aprendiz, a língua-alvo e o processo de aprendizagem só contribui para reproduzir essas relações de poder, que são pautadas na colonialidade.


Manter um ensino de línguas acrítico, que gira em torno de métodos ultrapassados, é insistir no paradigma colonial. Nós, aprendizes e educadores da periferia global, precisamos de um ensino pautado em temas relevantes para o povo brasileiro, sem fingir que o aprendiz está prestes a viajar para um país distante. Precisamos que o aprendiz tenha espaço para expressar livremente quem é, algo muito mais importante do que seguir a ordem de conteúdos do livro didático importado que só traz assuntos realmente interessantes a partir do nível intermediário - quando boa parte dos alunos já desistiu de continuar fazendo aulas que nada têm a ver com a realidade.


Em poucas palavras… precisamos de uma Educação Linguística crítica.




 

Adaptado de:


GRILLI, Marina. Por uma educação linguística Translíngue e Decolonial: questões para o ensino de alemão. Revista Iniciação & Formação Docente, v. 7, n. 4, 2020b, pp. 904-930.



Inspirado em:


CANAGARAJAH, Suresh. (Ed.). Literacy as Translingual Practice: Between Communities and Classrooms. New York: Routledge, 2013.

 

VERONELLI, Gabriela. The Coloniality of Language: Race, Expressivity, Power, and The Darker Side of Modernity. Wagadu, v. 13, 2015, pp. 108-134.

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