Não está sendo fácil viver no Brasil, minha gente...
Ao menos não para quem não faz parte de nenhum grupo de disseminação de ódio a qualquer tipo de minoria.
Mas o propósito deste texto não é fazer com que você se sinta mal, prof. Muito pelo contrário: é contribuir um pouquinho para que o combustível da revolta justa se acenda dentro de você!
Vamos lá: você certamente se indignou tanto quanto eu com o desaparecimento de Bruno Pereira e Dom Phillips, duas pessoas que dedicavam a vida a documentar a vida na Amazônia, contribuindo para que ela resistisse. Infelizmente, esse desaparecimento terminou da pior forma possível.
Casos como esse fazem lembrar até mesmo aos mais distraídos o quão flagrante é a causa ambiental no Brasil e no mundo: você pode não ter acesso a vegetais orgânicos nem abrir mão da praticidade das frutas embaladas em isopor no hipermercado, mas percebe como resistir à destruição do maior bioma de floresta úmida do mundo é um ato severamente punido por quem trabalha para manter nosso país na eterna condição de colônia.
Outra tragédia chocante que ganhou repercussão nacional recentemente foi a proibição, a uma menina que acabou de completar onze anos de idade, de interromper uma gestação. Proibição essa muito bem disfarçada de preocupação com a vida (de quem?), acobertada pela lentidão dos órgãos burocráticos envolvidos, e, justamente por isso, tão violenta.
Casos desse tipo não são tão raros em um país cada vez mais dominado pela misoginia e pelo fanatismo cristão, mas, quando ocorrem, aparece alguém para lembrar que o direito ao aborto é assegurado por lei em casos de violência sexual ou risco de morte da pessoa gestante.
Mesmo assim, uma nefasta combinação de moralismo e despreparo de profissionais que se envolvem na situação costuma impedir, ou quase, que se cumpra a lei e que a situação da vítima não se agrave ainda mais.
E é aqui que podemos começar a relacionar essas duas tragédias recentes, e a entender o que elas têm a ver com a educação e as línguas no Brasil.
Talvez você já tenha observado que tratar problemas estruturais como fatos isolados é, mais do que ingenuidade ou desconhecimento, uma estratégia para manter as coisas exatamente como estão, impedindo transformações mais profundas na sociedade.
Mas isso não poderá mudar no Brasil se não compreendermos que, por trás de toda violação de direitos básicos, está a colonialidade.
Em relação aos povos indígenas e a quem trabalha a favor deles, o país sempre foi hostil: somente após a promulgação da Constituição Federal de 1988 as línguas indígenas passaram a ser reconhecidas e a fazer parte das políticas linguísticas nacionais.
A primeira menção à inclusão das línguas indígenas no currículo escolar apareceu na LDB de 1996 - entretanto, o objetivo da escolarização ainda era o letramento em português. Em outras palavras, tratava-se do bilinguismo de transição, no qual o indivíduo é bilíngue somente até tornar-se monolíngue na língua considerada de maior prestígio, abandonando então sua língua materna.
Observe os sutis contornos que a colonialidade é capaz de exibir: ao garantir "direitos" às populações indígenas, o Poder Público restringiu suas possibilidades de desenvolvimento a um lugar muito limitado.
É exatamente o mesmo que acontece ao se garantirem direitos reprodutivos pela metade a pessoas com útero: quando apoderar-se do próprio corpo e interromper uma gestação não desejada é uma espécie de caridade destinada somente a quem não tem outra alternativa, ela passa a parecer desnecessária, pois quem já está no fundo da base da pirâmide social pode perfeitamente "suportar mais um pouquinho".
Indígenas, pessoas com útero e outras minorias estão abaixo da linha da humanidade no Brasil. Passam pelo processo a que Sousa Santos chama exclusão abissal: existe uma linha intransponível, determinada pelo que a pessoa é e não pelo que ela faz, que separa quem merece dignidade e quem não.
A essa altura do texto, você já conseguiu compreender de que maneira tudo isso se relaciona à educação e às línguas, prof?
As línguas indígenas sempre sofreram com a exclusão abissal, e seguem até hoje radicalmente marginalizadas. O mesmo aconteceu com as línguas, as expressões, os falares trazidos da África, e com o que permaneceu deles nos morros e favelas para onde foram empurradas as populações negras após o 13 de maio de 1888.
Ao povo brasileiro, de ascendência indígena e miscigenação negra, sempre foi negada educação emancipadora. À medida que embranquecia a população, por meio de incentivos para a imigração europeia, reafirmava-se o ideário da superioridade das pessoas de pele mais clara.
À medida que se expandia o sistema escolar, criavam-se currículos destinados a manter os mais pobres cada vez mais distantes do conhecimento emancipador.
E à medida que se conquistam direitos, mais violenta a resposta, conforme percebemos no caso das milícias que impedem a preservação da Amazônia e do ódio cristão que impede a preservação da vida e da dignidade das crianças, das meninas, das mulheres.
Todo dia, um exemplo de que direitos humanos pela metade só reforçam a desumanidade de quem depende dessas migalhas para sobreviver. Porque quem outorga direitos humanos se coloca acima de quem precisa recebê-los.
E segue o ciclo da colonização.
Baseado em:
FREIRE, José Ribamar Bessa. Changing Policies and Language Ideologies With Regard to Indigenous Languages in Brazil. In: CAVALCANTI, Marilda C.; MAHER, Terezinha M. (Orgs.). Multilingual Brazil. Language Resources, Identities and Ideologies in a Globalized World. New York/London: Routledge, 2018, pp. 27-39.
SOUSA SANTOS, Boaventura de. O fim do império cognitivo. A afirmação das epistemologias do Sul. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
Este texto foi escrito em linguagem neutra de gênero. Doeu? ;)