São Paulo sem livros
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São Paulo sem livros

Atualizado: 31 de ago. de 2023

O governo do estado de São Paulo decidiu não aderir ao Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD) em 2024. Isso significa que, no ano que vem, mais de 5 mil escolas da rede estadual paulista não receberão livros didáticos para alunos do Ensino Fundamental II e Médio.



É a primeira vez que isso acontece, sob a justificativa de que a rede trabalha com material próprio e que todos os livros estão sendo "uniformizados em um material digital", segundo o secretário da Educação Vinicius Neiva.


Supostamente, as escolas terão computadores em número suficiente para garantir o acesso ao material, e "os mais necessitados" poderão receber os materiais impressos ou doações de computadores. Como se, da noite para o dia, escolas que não têm papel higiênico pudessem dispor de tamanha quantidade de sulfite e tinta de impressora.


Como se pudéssemos contar com um governo que tirou o direito aos livros para investir em computadores pessoais.


Essa decisão tenebrosa me leva a pensar em quais interesses estão contemplados aí. Outro Secretário da Educação, Renato Feder, é um dos proprietários da empresa Multilaser... que vende equipamentos eletrônicos e tem contrato com o estado de São Paulo.




De maneira análoga, venho pensando em quais interesses estão contemplados quando nós, professores de línguas, decidimos não adotar um livro didático.


Livros didáticos são elaborados por profissionais capacitados e seguem regras definidas por equipes altamente especializadas. Eles têm problemas? Têm, sim, mas nenhum que justifique uma postura anti-livro. Isso tem nome: negacionismo.


É muito comum entre professores de língua que já entenderam o problema de seguir métodos importados a ideia de abolir o uso do livro didático. Mas ensinar sem livro acaba se mostrando uma ilusão, por inúmeros motivos.


Em primeiro lugar, por uma questão prática: qual professor brasileiro tem tempo de sobra para o trabalho não-remunerado de criar o próprio material? Atrelar a elaboração de material a um trabalho de qualidade é naturalizar a precarização do trabalho docente.


Em segundo lugar, por uma questão prática. Novamente: as equipes que trabalham criando livros didáticos são extensas, formadas por pesquisadores com vasta experiência na área, a partir de concepções de língua e de ensino definidas intencionalmente. Qualquer proposta de criação individual de um material não terá a mesma riqueza e profundidade.


Os problemas dos livros didáticos para o ensino de língua são outros. Nenhum deles estimula reflexões sobre temas tidos como polêmicos, porque ignorá-los faz parte de uma convenção das grandes editoras para faturar mais. O acrônimo PARSNIP simboliza os tópicos proibidos: Politics, Alcohol, Religion, Sex, Narcotics, -Isms [nazismo, comunismo, feminismo] e Pork [sim, carne de porco].


O resultado disso está mais do que comprovado estatisticamente: apenas 5% dos brasileiros declaram ter conhecimento satisfatório em inglês, a língua mais procurada no Brasil e no mundo. E quantos são fluentes? E quantos sabem outras línguas? Porcentagens irrisórias.



É assim que o projeto colonial dá certo: negando uma educação crítica a quem quer aprender outra língua, limitando o ensino a "objetivos comunicativos" vazios, perdendo tempo com imitações de falantes nativos em vez de olhar para a realidade.


É desolador notar que o desprezo ao conhecimento documentado em livros de alta qualidade, selecionados pelo PNLD, chegou ao status de política pública em São Paulo. Mas igualmente desolador é ver professores que decidem, por conta própria, abandonar esse recurso tão rico para tornar individual o processo de produção do conhecimento, que deveria ser coletivo.


É possível trabalhar o pensamento crítico sem abrir mão do livro didático. Mais do que isso: com todas as suas contradições, ele pode e deve funcionar como ponto de partida para o pensamento crítico. Afinal, abolir os métodos engessados do colonizador não passa por fechar os olhos à sua existência.


E não tem nada mais colonizado do que abandonar oportunidades de aprender com fontes sérias e democratizadas para trocá-las por materiais pouco acessíveis.

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