Acho que a reflexão de hoje está um pouco mais profunda do que de costume, prof. Mas tem alguns pensamentos que preciso dividir com você.
Não sei até que ponto você acompanha o meu trabalho para além do Instagram, mas sempre que falo sobre o pensamento decolonial, um dos autores que cito é o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos. Já indiquei inúmeras vezes os artigos e livros dele nos meus cursos, assim como já os citei nos meus próprios artigos científicos.
Eis que, na semana passada, vieram à tona denúncias de assédio sexual por parte desse pesquisador contra ex-alunas e orientandas. Como de costume, assim que uma delas ousa quebrar o silêncio, diversas outras tornam públicos os seus relatos também.
E aí, já quem diga que esse tipo de comportamento em nada surpreende - nem todo homem, mas sempre um homem. Há quem se afirme decepcionada. E há quem jure que já não esperava grande coisa de um homem branco europeu que fala sobre descolonização do conhecimento.
Eu pertenço ao segundo grupo.
Não pretendo transformar este texto em um desabafo pessoal sobre o peso que é ser mulher, ou ser percebida como mulher, em um mundo como este - ou sobre os incontáveis assédios que eu mesma já sofri ao longo da vida. Apenas saiba que essa dor existe.
Meu ponto aqui é o seguinte: em que nos ajuda desqualificar o trabalho de um pesquisador que propõe construir saberes não eurocentrados, somente porque ele é europeu?
Não falo aqui sobre Santos, o assediador, cujo nome infelizmente está manchado de maneira que procurarei não mais dar visibilidade a ele - aliás, leiam Maldonado-Torres e Aníbal Quijano em seu lugar.
Mas falo sobre essa essencialização do ser humano que enxergamos antes de suas ideias e atitudes, frequentemente chamada de identitarismo: é como se um pesquisador branco europeu não pudesse, de maneira alguma, trabalhar de maneira ética para a superação das desigualdades.
É nisso que acreditamos? Que gênero e etnia vêm antes de crenças, valores e conduta? Que todo homem sempre será machista, e toda pessoa branca fechará os olhos para o racismo, não importam as condições de vida dessas pessoas?
Ora, qual a finalidade dos movimentos sociais, então?
Outro assunto sobre o qual se fizeram muitas críticas na semana passada foi a declaração do atual Ministro da Fazenda Fernando Haddad a respeito da possível taxação de itens importados da China: "eu não conheço a Shein. O único portal que eu conheço é o da Amazon, eu compro um livro todo dia".
Ainda que a taxação não se proponha a taxar as pessoas físicas que compram da China, mas as empresas que sonegam impostos, a infeliz fala do Ministro demonstra o quanto ele desconhece a realidade do público brasileiro que busca itens importados daquele país para economizar seu suado dinheiro.
E aí eu me pergunto novamente: vamos reproduzir o discurso de que a declaração "não surpreende", porque vem de um professor da USP? Vamos naturalizar a descrença nos nossos representantes? Vamos continuar insistindo na segregação entre academia e vida real, que só serve ao propósito de manter afastadas da universidade as grandes massas, pois dela se ressentem?
Obviamente entendo e defendo com unhas e dentes que todas as instâncias acadêmicas e da democracia representativa sejam ocupadas por pessoas oriundas das classes trabalhadoras. Mas acredito que essa ocupação não se constrói a partir do desprezo a quem já está lá, fomentando uma rivalidade "nós contra eles".
Quem somos nós, afinal? Também não somos um grupo homogêneo. Somos homens, mulheres e pessoas não-binárias. Somos trabalhadores de todos os setores, com as mais diversas trajetórias profissionais e de aprendizagem.
Isso me lembra um trecho de um livro que já citei aqui anteriormente, o "Ninguém regula a América". Na página 117, os autores se referem à ideologia que endossou o golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff.
[...] a ideia de que esses governos [do PT] "produziram" uma luta de classes entre "ricos e pobres", quando a verdadeira luta deveria ser entre "todos nós pagadores de impostos" e o "Estado que nos expropria", em um raciocínio que [...] converge para a defesa do liberalismo: é o Estado grande e protetor que cria indivíduos parasitários, ineficientes e dependentes de bolsas e assistencialismos.
Pensei nesse trecho porque, tanto nele quanto nos dois exemplos que trago aqui de homens brancos agindo em contrário ao que se esperava deles por sua trajetória e posição, cria-se uma narrativa com base em características imutáveis ou quase imutáveis, como é o caso do gênero, da etnia e do fato de pertencer às classes trabalhadoras. Essa narrativa, por sua vez, dá origem a ideais de unidade absoluta que são o cerne do fascismo.
Não, não estou dizendo que existe fascismo contra homem branco europeu, nem associando todo e qualquer movimento identitário à lógica supremacista. Ok? Acredito na inteligência de quem lê esta newsletter, mas é bom deixar claro.
O ponto é que não podemos perder a capacidade de nos indignarmos com as pessoas que pregam uma coisa e fazem outra. É bem diferente esperar uma postura misógina de um sujeito que se identifique com ideais conservadores e de outro que seja conhecido por supostamente lutar contra eles há décadas.
Opera sob a mesma lógica essencialista a ideologia grotesca chamada "feminismo" radical, uma doutrina de ódio conservador e negacionista que dissemina todo tipo de preconceito até mesmo contra quem diz defender. Mas isso não cabe explicar aqui nem agora. Fica pra uma próxima.
Em resumo, se a Educação é um ato político, precisamos defender uma Educação Linguística capaz de questionar e construir a sociedade plural que queremos - e não de reforçar os sectarismos que não queremos.
Faz sentido para você, prof?
Texto originalmente publicado na newsletter de 17 de abril de 2023.
Só uma pequena observação: Haddad é lido como branco no Brasil, mas ele não é branco, e sim é marrom (descendente de libaneses, um povo árabe).