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LGBBBT e o preconceito invisível

Este não é mais um texto comentando o Big Brother Brasil - até porque esta que vos escreve não acompanha o programa. Ok, eu sei, muita gente acha cult sair dizendo que não assiste enquanto, na verdade, assiste escondido. Mas posso garantir que esse não é meu caso, pois nem TV eu tenho em casa.


Também já passei da época de me achar superior por consumir a cultura "da elite" em vez da cultura "da massa", e espero que isso já tenha ficado claro ao longo dos 20 textos que saíram aqui no blog até hoje.


De qualquer forma, aconteceu uma situação gravíssima de LGBTfobia no BBB, daquelas que a gente, que trabalha com educação para o século XXI e não para o século XIV, não pode deixar passar batido.


É o seguinte: dois homens se beijaram.


Dois homens negros, aliás. Se beijaram de livre e espontânea vontade, sem nenhum tipo de assédio ou coerção envolvido.


Um deles disse: "sou um preto, bissexual, que ouviu de todos os lados que tá errado chegar no BBB e abrir essas ideias aí".


O público se dividiu nas opiniões, é claro. Teve quem achasse o tal beijo uma pouca-vergonha muito mais do que qualquer beijo forçado, situação de assédio ou manipulação psicológica que já tenha acontecido na casa. São os defensores da família, né? Família essa em que há espaço para o abuso, mas nunca para a sexualidade livre.


Do outro lado, a galera apontando que essa opinião é homofobia, questionando a homofobia, denunciando a homofobia.


Já encontrou o erro aí?



Se ainda não encontrou, volte quatro parágrafos.


O homem em questão afirmou ser bissexual, lembra?


Pois então... como é que uma pessoa que não é homossexual vai sofrer homofobia, gente?


A resposta mais comum a essa pergunta é a seguinte: foi um beijo gay, então, quem não gostou está reproduzindo homofobia.


Errado!


Não existe beijo gay, sabia? Um beijo não pode ser gay, oras.


Pessoas têm orientação sexual. Beijos não têm orientação sexual.


Nem todo homem que está com um homem, que sente atração por homens ou que se relaciona com homens é gay. Bissexuais existem! Portanto, se você não tem certeza de que os dois homens envolvidos em determinada demonstração de afeto são gays, não é correto determinar que qualquer prática


Você já parou pra pensar nisso?


É claro que o mesmo se aplica às mulheres: não existe beijo lésbico ou sexo lésbico, pois as mulheres é que são lésbicas, e não suas práticas. Ou podem ser bissexuais, também. Nem sequer admitir que elas possam ser bissexuais é bifobia.


O termo bifobia se refere ao preconceito específico contra pessoas bissexuais, somente por serem bissexuais. Assim como diversas outros tipos de preconceito, ele pode ocorrer de duas formas:


A primeira delas é a negação explícita, como no caso de quem diz que bissexualidade não existe. Muita gente bissexual já ouviu que a sua orientação sexual era indecisão, ou só uma fase passageira, ou até mesmo se sentiu coagida a "escolher" ser hétero ou homossexual.


A segunda forma de preconceito é o apagamento, a invisibilização, isto é, quando as pessoas "esquecem" que bissexuais existem. Por exemplo, quando se fala em direitos LGBT contra a homofobia, a lesbofobia e a transfobia. Faça um exercício: conte quantas ocorrências dos termos "bissexual" e "bifobia" aparecem em cada um desses três links, em comparação aos outros termos.


Esse discurso, muito recorrente, levou à criação de uma espécie de piada interna na comunidade bissexual: parece que o B da sigla é de "biscoito"...


Outro exemplo: quando um grande jornal publica esta chamada a respeito de um evento, desmentida na própria imagem do evento.



Aliás, a Caminhada de Mulheres Lésbicas e Bissexuais de São Paulo só ganhou esse nome depois de muita luta do movimento bissexual, pois, durante muitas edições, era só de lésbicas, mesmo.


Voltando ao beijo entre homens do BBB, vem a réplica: "ah, mas foi um comportamento gay, logo, o preconceito se deve a terem achado que o cara é gay".


Errado de novo!


O fato de acharem que um homem é gay porque ele beija homens é justamente fruto da bifobia. Tanto no sentido do apagamento, que esquece que bissexuais existem, quanto no sentido explícito, acreditando que bissexualidade não existe. Homem que gosta de homem é gay, e pronto!


Este documento elaborado pelo comitê LGBT de São Francisco, nos Estados Unidos, também afirma o seguinte, logo na página 3 (tradução minha):


Apesar dos dados explícitos de que bissexuais existem, as pressuposições de outras pessoas geralmente tornam bissexuais invisíveis. Duas mulheres de mãos dadas são lidas como "lésbicas", dois homens como "gays", e um homem e uma mulher como "hétero". Na realidade, qualquer uma dessas pessoas pode ser bi – talvez todas elas.

Portanto, reforça-se aqui o seguinte ponto: não existe "beijo gay", "relacionamento lésbico" ou qualquer coisa que tenha uma orientação sexual. Somente pessoas têm orientação sexual, e presumir que elas sejam exclusivamente homo ou hétero é bifobia.


Este meme, que retoma o símbolo bissexual do unicórnio – outra piada interna, pois unicórnios não existem, e parece que bissexuais também não – rebate um dos argumentos da bifobia como negação: teoricamente, as pessoas sairiam afirmando que são bissexuais para não ter que encarar a realidade de que são, na verdade, gays ou lésbicas.

O absurdo é tão grande que a piada ficou ótima. Ser bissexual não é menos difícil do que ser gay ou lésbica, pois bissexuais sofrem preconceito no meio hétero e também no meio homossexual.


O movimento bissexual tem denunciado há anos, no mundo todo, o quanto a bifobia é danosa à saúde mental das pessoas bissexuais. Um exemplo de estudo é este aqui, realizado no Canadá, que mapeia os níveis de saúde mental das pessoas bissexuais e estabelece relações entre bissexualidade e pobreza.


Uma das conclusões do artigo é que a falta de serviços adequados ao público bissexual pode estar mantendo as desigualdades. Mesmo que o estudo seja do Canadá, toda pessoa bissexual já notou essa falta de serviços adequados. Na área da saúde, por exemplo, não costuma haver políticas específicas para pessoas bissexuais: tudo se baseia na escolha de um único lado.


O mais delicado nisso tudo é que o comportamento nocivo vem, muitas vezes, de dentro daquela que deveria ser uma comunidade LGBT.


Não faltam lésbicas e gays menosprezando e invalidando a bissexualidade de todas as formas. Infelizmente, foi justamente uma mulher lésbica a protagonista de uma cena cruel de bifobia no BBB, conforme mostra o tweet:



É sabido que membros de grupos oprimidos tendem a reafirmar sua condição de oprimidos. Muitas vezes, esse comportamento é questão de sobrevivência. Entretanto, nenhuma opressão sofrida justifica praticar opressões contra outros grupos minoritários.


É por isso que eu já estou preparada para ser acusada injustamente de lesbofobia por este texto. Onde já se viu apontar a mulher lésbica como opressora?


Todo mundo conhece aquela célebre frase do Paulo Freire: "quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor". E parece que é isso que acontece aqui.


bell hooks, ao falar sobre a intersecção entre a luta feminista e a luta antirracista, afirma que os homens negros têm dificuldade de entender a perspectiva feminista, porque sempre foram oprimidos e sempre se viram como oprimidos. Porém, o feminismo os chama a enxergar e confrontar seu próprio machismo.


Da mesma forma, o movimento bissexual chama gays e lésbicas a confrontarem sua própria bifobia, não reproduzindo discursos e práticas preconceituosas das quais sempre foram alvo.


Um texto incrível da Jéssica Gomes mostra um pouquinho da realidade da mulher bissexual em meio às lésbicas. Veja um trecho:


Aff mano, bifobia não existe, fica quieta. Butch bi não existe, fica quieta. Mães bissexuais tendo perda de guarda porque juiz interpreta como promiscuidade não existe, fica quieta. Relacionamento abusivo pra cima de bi justificado pelo “sinto o dobro de ciúmes” não existe, fica quieta. Mas bi, vamos pra uma roda de conversa amanhã, pode desabafar. Bi pode falar. Só não fala de bifobia, não queima o rolê bi, manjo mais da sua sexualidade que você.

É por todas essas vivências que a bifobia existe, enquanto opressão específica às pessoas bissexuais. Não se trata da homofobia que só aparece quando a pessoa é lida como homossexual: trata-se de uma vivência específica, partilhada por pessoas de uma orientação sexual específica, e praticada por diversos grupos não-bissexuais dentro da sociedade.


Afinal, se isso é o que bissexuais passam na mão de outras pessoas LGBT, certamente não é melhor no meio hétero, certo?


Só pra não ficar a impressão de que se trata de casos isolados, rolou essa enquete em um grupo de pessoas bi no Facebook:



E no Instagram, esse é o melhor que pode acontecer quando uma pessoa bissexual aponta o apagamento por parte de uma lésbica: ser ignorada.


Mas, antes de terminar o texto, vamos fazer um momento de silêncio em nome daqueles e daquelas que sentem a necessidade de comentar "nem todo".


Sabe o papo de "nem todo homem", que sempre surge quando um homem tenta invalidar a fala de uma mulher contra o machismo? Então, é esse mesmo.


"Nem todo" é o discurso pronto de quem considera mais urgente livrar a própria barra do que reconhecer uma estrutura de opressão existente.


Ou seja: se você é gay ou lésbica e não invalida a bissexualidade, não deixa de se relacionar com alguém por ser bissexual, não pressiona seus pares a escolher um lado... parabéns! Este texto não é sobre você.


Que tal aproveitar pra conscientizar mais gays e lésbicas sobre o quanto esse tipo de comportamento é nocivo?


Inclusive pelo seguinte motivo: não existe "um lado" ou "outro lado", afinal, homem e mulher não são os únicos gêneros possíveis. Já falamos disso aqui antes, mas ainda tem gente que se recusa a enxergar a realidade, né?


Em resumo, a mensagem é a seguinte: vamos nomear corretamente as opressões.


Esse é o primeiro passo para derrubá-las, pois não só a sociedade molda a língua, mas a língua também molda a sociedade.



 

Inspirado em:


HOOKS, bell. Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade. 2. Ed. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2017.



Este texto foi escrito em linguagem neutra de gênero. Doeu? ;)

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