Formação continuada docente: não, não basta fazer cursos online
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Formação continuada docente: não, não basta fazer cursos online

Tenho insistido aqui que de nada adianta implementar inovações tecnológicas nas escolas, se não for feito um investimento correspondente na formação docente.


Porém, será que está claro o que significa formação docente?


Nas décadas de 1930 e subsequentes, acreditava-se que a prática docente poderia ser aprendida por meio da reprodução de bons modelos. Aos poucos, a teoria foi ganhando espaços, mas o estágio profissional ainda não era obrigatório – afinal, nem todas as alunas da escola normal pretendiam trabalhar, de fato, como professoras.


Já na década de 1970, o magistério tornou-se uma habilitação do ensino médio. O estágio focava técnicas e burocracia, como no planejamento rígido e no controle das ações realizadas. Infelizmente, essas mudanças pioraram ainda mais a discrepância entre formação docente e necessidades discentes.


Esse tratamento dado à formação docente sofreu duros questionamentos, pela crítica de cunho marxista, devido à pretensa neutralidade que refletia, isto é, ao desvinculamento entre a escola e a realidade político-social em seu entorno.


Na década de 1990, teve início uma grande reforma na educação brasileira, que se refletiu em novas configurações para a formação docente inicial, presentes até hoje.


Todavia, conforme observam Pereira e Heinzle, o distanciamento entre teoria e prática docente persiste, e se configura como uma desarticulação entre saberes didático-pedagógicos e saberes específicos da área do conhecimento que se ensina.


É aí que entra a necessidade de formação continuada.


As discussões sobre formação continuada, isto é, sobre a necessidade de formar quem já atua como docente, começaram a ganhar espaço no Brasil na década de 1970.


Entre os anos 1980 e 1990, surgiu a ideia de que não bastava participar de treinamentos: a formação continuada deveria ser realizada através da contínua reflexão sobre a prática docente.


Entretanto, o crescimento veloz do neoliberalismo na década de 1990 levou a uma associação entre essa reflexão docente sobre a própria prática e a competência técnica, afastando-o da dimensão política inerente ao próprio ofício.


Isso começou a mudar a partir da democratização do acesso ao ensino superior, no início dos anos 2000. Entre os cursos que mais expandiram, as licenciaturas ocupavam as primeiras posições.


Daí a importância dos eventos de formação docente continuada para toda a sociedade, transformando a escola em um espaço em que docentes não só ensinam, mas também aprendem.


A premissa por trás da formação continuada é que docentes são seres inacabados, pois nenhum processo formativo inicial pode abranger toda a complexidade da tarefa docente.


A partir daí, é possível distinguir três enfoques da formação docente continuada:

  • o processo informal e espontâneo;

  • a busca por cursos;

  • o método da práxis pedagógica.


O processo informal é constituído, basicamente, do conhecimento disseminado pelo senso comum. Não há uma preocupação com a credibilidades das fontes disseminadoras de conhecimento.


Naturalmente, esse tipo de orientação leva profissionais à manipulação pelos interesses dos grupos hegemônicos. Por sua vez, aprendizes que tenham aula com tal profissional só poderão receber uma formação conservadora, acrítica, passivista, focada no consumo e no tal "mercado de trabalho".


É assim que se mantém o sistema escolar ultrapassado vigente, justificado pela máxima "sempre fiz assim e deu certo"... deu certo pra quem? Para os grupos hegemônicos, no máximo – grupos esses dos quais profissionais da educação definitivamente não fazem parte!


A reprodução desse discurso vai fazendo com que ele se distancie de qualquer contexto, de qualquer vestígio da vida real. A partir daí, o tal conservadorismo se transforma em discurso de opinião, que é, necessariamente, um discurso superficial. O completo oposto do que condiz com a profissão docente.


Dessa forma, a responsabilidade pelo eventual insucesso escolar acaba recaindo sobre quem aprende. É injusto? É. Mas, por outro lado, também não dá para seguirmos culpando docentes pelo fracasso do sistema escolar... e então?


Parece que a conta não fecha? Bem, não é assim.



Somente uma renúncia completa a essa imagem de "docente que sabe tudo", a esse dogmatismo que coloca a competência docente como um produto acabado, pode tornar possível a quem ensina reconhecer seus pontos fortes e fracos.


Afinal, a atividade intelectual só pode acontecer em ambiente de dúvida e inquietação! Ensinar, como sinônimo de despertar, provocar e questionar, só é possível quando docentes também se deixam questionar.


Ou, nas palavras de Paulo Freire:

Na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática.

Esse é o método da práxis pedagógica, caracterizado pela autoformação e formação coletiva.


Sabrina Fernandes lembra que práxis não é sinônimo de prática: a práxis é quando teoria e prática se completam. Se a teoria erra, a prática aponta isso. Se a prática está errada, a teoria também pode identificar.


As mudanças ocorrem quando teoria e prática se complementam.


No vídeo ao lado, a autora aprofunda a explicação do termo práxis conforme o pensamento marxista.


De qualquer forma, a nossa palavra-chave aqui é questionamento.


Não se trata de descartar o senso comum para dar lugar ao conhecimento reconhecido como científico. Em vez disso, o senso comum deve ser transformado com base no conhecimento científico.


Que diferença entre o método da práxis pedagógica e a caça desenfreada aos certificados de cursos de formação online, né?


Afinal, o objetivo da formação docente é desenvolver a autonomia profissional bem embasada, ou colecionar comprovantes de cursos de quatro horas de duração?


Não, isso não significa que fazer cursos não tenha seu valor. Eles ainda constituem um dos três enfoques da formação continuada!


Mas esse assunto fica pra semana que vem.

 

Baseado em:


CONSALTÉR, E.; FÁVERO, A. A.; TONIETO, C. A formação continuada de professores a partir de três perspectivas: o senso comum pedagógico, pacotes formativos e a práxis pedagógica. Educação Em Perspectiva, 10, p. 1-14, 2019. DOI: 10.22294/eduper/ppge/ufv.v10i.7121


FERNANDES, Sabrina. Se quiser mudar o mundo. Um guia político para quem se importa. São Paulo: Planeta, 2020.


FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz & Terra, 2019 [1996].


PEREIRA, Ricardo Inocêncio; HEINZLE, Marcia Regina Selpa. Teoria e prática: articulação no percurso formativo de um curso de Letras-Língua Alemã. Revista Educação, v. 43, n. 2, 2018, pp. 285-299. Este texto foi escrito em linguagem neutra de gênero. Doeu? ;)

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