Língua e poder em 520 anos de Brasil
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Língua e poder em 520 anos de Brasil

Para entender as dificuldades que enfrentamos ao ensinar línguas no Brasil de hoje, é necessário revisitar a história das políticas linguísticas no nosso país. Afinal, um povo que não conhece a sua história está fadado a repeti-la... e não faltam exemplos recentes disso, não é mesmo?

O Marquês de Pombal
O Marquês de Pombal

Bem, a primeira tentativa de imposição da língua portuguesa no Brasil data do ano de 1759.

Naquela ocasião, o Marquês de Pombal proibiu o uso de outras línguas que não o português, em todas as colônias portuguesas.


Alguns anos depois, foram instituídas aulas de latim e de grego nas escolas jesuíticas do Brasil. Também havia aulas de leitura e escrita do português, e de aritmética, retórica e filosofia.


No século XIX, a influência da Revolução Industrial iniciada na Europa chegou ao Brasil: enquanto o ensino do latim e do grego era baseado na gramática e na tradução, as línguas vernáculas passaram a ser ensinadas de forma a preparar qualquer aprendiz para situações de comunicação cotidiana, pois essas situações estavam se tornando cada vez mais comuns.


E aí teve início a chamada Era dos Grandes Métodos de ensino de línguas: cada um deles contrariando radicalmente seu antecessor e prometendo ensinar, agora sim, de forma eficaz! Essa atitude reforçava o mito de que haveria um método ideal, perfeito, para qualquer aprendiz e em qualquer contexto, apenas aguardando para ser descoberto.


Essa ideia parece fazer sentido? Bem, aparentemente sim, pois até hoje não param de surgir métodos mirabolantes, prometendo fluência absoluta em poucos dias... infelizmente, não são poucas as pessoas que caem nessa pegadinha de mau gosto.


Retomando a nossa história, no século XIX começaram os grandes fluxos de imigração para o Brasil. Alemães em 1824, italianos em 1870, japoneses em 1908... de um lado, a fundação de comunidades de fala, de escolas e de trocas linguísticas.


De outro lado, as violentas proibições de que essas pessoas se expressassem em línguas que não o português: primeiro, por meio da proibição do ensino dessas línguas nas escolas públicas, pela Constituição de 1934. Posteriormente, com as severas punições estabelecidas por Getúlio Vargas durante o macabro Estado Novo.


A primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) data de 1961, quando o inglês já tinha adquirido sólida popularidade no Brasil e no mundo. A lei, no entanto, ao invés de fomentar seu oferecimento nas escolas públicas e ampliar a oferta de outras línguas, retirou a obrigatoriedade do ensino de línguas no Ensino Médio.


A consequência, claramente, foi a expansão dos cursos de idiomas privados – e da perigosa ideia de que na escola não se aprende inglês de verdade. Outra ideia firmemente presente nas mentes brasileiras até hoje, não?


A reformulação de 1971 da LDB, alinhada aos ideais conservadores da ditadura, determinou que a língua portuguesa passasse a funcionar "como instrumento a serviço do desenvolvimento do Brasil".


Cinco anos depois, a Resolução nº 58 restabeleceu a obrigatoriedade do ensino de uma língua estrangeira no Ensino Médio.


Enquanto isso, o ensino das línguas de imigração passava a ser reinserido nas redes públicas de ensino, quase quarenta anos após sua proibição.


Foi somente em 1996, com uma nova LDB, que essa obrigatoriedade se estendeu ao Ensino Fundamental II, acrescentando ainda outra língua estrangeira no Ensino Médio, de forma optativa. Quanto conhecimento, memória, história, quantas subjetividades não se perderam nessas seis décadas de supressão do principal instrumento de comunicação de povos inteiros?


Na virada do século, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) determinaram que o foco do ensino de línguas na escola seria a competência de leitura, pois, dadas as condições materiais das escolas e das salas de aula, não seria possível fomentar satisfatoriamente a compreensão auditiva, a escrita e a fala.


Em outras palavras, naturalizou-se a precariedade da escola pública e, com ela, naturalizou-se também a aprendizagem deficiente de línguas na escola pública.


Em 2005, a chamada "lei do espanhol" tornou a oferta da língua espanhola facultativa a partir da antiga quinta série do Ensino Fundamental e obrigatória no Ensino Médio, de matrícula facultativa pelos alunos.


Sim, data de 2005 a primeira medida a definir uma língua específica a ser ensinada na escola! Afinal, a LDB então vigente estipulava apenas a oferta de uma língua à escolha da comunidade. Essa foi mais uma medida de padronização do acesso a línguas do povo brasileiro, focada no famigerado "mercado de trabalho".


OCEM Linguagens
OCEM Linguagens

Já as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM), de 2006, apontam que surge um conflito de objetivos do ensino de línguas na educação básica quando a escola tende a concentrar-se no ensino apenas linguístico ou instrumental e desconsidera os objetivos educacionais e culturais do ensino de línguas.


Em 2017, foi lançada a polêmica Base Nacional Comum Curricular (BNCC), abordando como linguagens a arte, a educação física e as línguas portuguesa e inglesa.


No mesmo ano, a lei 13.415 revogou em definitivo a lei do espanhol, após medida provisória nesse sentido promulgada no ano anterior. A oferta obrigatória do espanhol no Ensino Médio foi transformada na oferta obrigatória "de outras línguas, preferencialmente o espanhol", mas de matrícula optativa.


A mesma lei também estabeleceu o inglês como língua obrigatória a ser ofertada no Ensino Fundamental a partir do sexto ano, antiga quinta série, e no Ensino Médio – em mais um movimento de padronização linguística...


Em resumo, se os esforços no sentido de impor o monolinguismo tiveram início com a chegada dos portugueses, esses esforços não tiveram um fim até hoje.


Foram sucessivas as tentativas de imposição da língua portuguesa como oficial. De um lado, outras línguas faladas pela população eram reprimidas, e de outro lado, as línguas de prestígio se tornavam acessíveis apenas a quem pudesse custear cursos privados.


Foi assim que chegamos a um ensino de línguas fraco e deficiente nas escolas públicas, na proliferação de cursos privados acessíveis a poucas pessoas, e nas propagandas enganosas que prometem fluência como que por encantamento. Entendeu a gravidade da situação?



A História nos prova que a língua é um instrumento de poder. E aqueles que ocupam o poder no Brasil desde 1500, salvo raras exceções, têm trabalhado para manter o povo brasileiro à margem das línguas.


Por isso, aprender línguas no Brasil é um ato revolucionário!


 

Baseado em:

GRILLI, Marina. Passado, presente e futuro do ensino de línguas no Brasil: métodos e políticas. Linguagens - Revista de Letras, Artes e Comunicação, v. 12, n. 3, p. 415-435, 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.7867/1981-9943.2018v12n3p415-435.

E neste post publicado no blog da Realvi, em 1/12/2020: https://blog.realvi.com/lingua-e-poder-em-520-anos-de-brasil/


Este texto foi escrito em linguagem neutra de gênero. Doeu? ;)


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